Friday 24 March 2017

Lavínia

Tratamos aqui neste capítulo de um tipo de relação muito comum em várias sociedades, o casamento como forma de construção de um poder social. Quando não há nenhuma relação afetiva entre o casal, quando estes mal conhecem um ao outro e, por dever social, devem formar um matrimônio para manter um patrimônio.
Um casamento de aparências onde aquele não ama esta e vice-versa, sendo provável que este casal nunca tenha se visto durante a vida, e, juntos, formam um par elegante e modelar para a sociedade circundante. É conveniente demonstrar para a sociedade que há uma união legal, amparada pelo desejo dos deuses, e no entanto manter apenas o simulacro desta relação.
Antes de refletir sobre estes aspectos conjugais na literatura clássica seria oportuno destruir um paradigma anacrônico. Muito frequentemente ouve-se nos corredores de universidades, em salas de aula e até em artigos acadêmicos sérios que Homero é machista. Que Virgílio é machista. Assim como Platão acreditava que a fantasia literária era prejudicial para o pleno desenvolvimento da Paideia, do cidadão moralmente elevado da Pólis, os hodiernos adquiriram este vício de criticar aquilo que não entendem, ou pior, jamais leram.
Dizer de forma séria que os autores clássicos são machistas é um anacronismo e uma falta de sensibilidade estética imperdoável. Isso só pode ser dito por aqueles que nunca leram sequer um verso da Odisseia ou da Eneida. Aqueles que se contentam com uma fortuna crítica tardia, desapegada de qualquer valor cultural real do que era a sociedade grega e romana de fato. 
Outros, ainda mais ignorantes do que estes, acusam os romanos de terem sido "homossexuais". Como eu posso aplicar conceitos criados no século XIX como machismo e homossexualidade numa obra e numa cultura que desconhecia estes termos? 
O recalque platônico é latente em muitos contemporâneos ansiosos por falar daquilo que nunca conheceram. Platão era um pensador que usava da teoria e do método como forma de atingir uma suprema verdade a respeito do homem, da moral, da sociedade e até de Deus. Platão escrevia de forma teatral, apesar de repugnar Homero. O poeta usa da ficção artística para que o leitor possa atingir a sua verdade. Em termos simplistas Platão usa da filosofia, da verdade para atingir a mentira, e Homero usa a mentira para atingir a verdade. 
Homero não é um cientista ou teórico que defende que as mulheres são seres inferiores. E como já foi dito, quem defende esta hipótese do machismo homérico nunca teve coração para ler a Ilíada, pois já parte do pressuposto que é impossível ler uma obra machista. Esse tipo de preconceito é oriundo da ignorância generalizada que perpetra os muros das academias desde a Atenas clássica. Criticar aquilo que não se conhece é um erro metodológico pueril. Em suma, Platão não leu corretamente os clássicos, pois já estava permeado de preconceitos. 
E eu não sei que tipo de pensamento crítico e socialmente construtivo é este que acaba num determinismo e numa superficialidade hedionda. Rotular com uma palavra ou um conceito um espectro magnânimo de relações históricas e poéticas. É moda dizer palavras chaves para classificar aquilo que não se entende: isto é machista. Aquilo é misógino. Este é homofóbico. Com estes rótulos simplificadores acreditam ter uma postura crítica e uma contribuição social. Como se chamar um criminoso de bandido transformasse a sociedade como uma mágica da fata Morgana.
Pensar com respeito a sociedade é uma atividade trabalhosa e que requer muita dedicação. A maioria contenta-se com ideias prontas advindas de formadores de opinião. Deixando estes novos platões ao lado, voltemos a tratar da relação conjugal na literatura clássica. Helena era casada com Menelau, rei de Esparta e acabou sendo raptada por Páris e levada para Troia. Mas quem acusa Homero geralmente assistiu a alguma adaptação ridícula da Ilíada para o cinema comercial. 
O nome da obra homérica é "Ilíada", o que significa mulher troiana. Helena deixa de ser espartana contra a sua vontade e torna-se uma ilíada. A filha de Tindareu é o centro das atenções na obra homérica. Em segundo lugar aparece a ilíada Briseida, raptada pelos mirmidões que acaba tendo uma relação com Aquiles, tema do Canto I da Ilíada. Uma relação de amor verdadeiro, que acaba por ser trágica, num mundo onde homens e mulheres devem cumprir com seus deveres. 
E o que a personagem Lavínia tem a ver com tudo isso? Lavínia não é uma personagem central na Eneida. Ela quase não fala e não aparece na obra, e, diferente de Helena ela não foi raptada por um estrangeiro. Lavínia é uma adolescente solteira que deve casar-se com um estrangeiro com a finalidade de fortalecer o patrimônio territorial de uma nação. 
De outro lado da moeda Eneias nunca amou Lavínia, e, se dependesse da vontade do anquisíada, ele casaria-se com seu grande amor, a rainha fenícia Dido. Só que o destino ou os fados tinham outros planos para o herói troiano. O amor por Dido não iria consolidar uma aliança militar forte o suficiente no Lácio. O casamento por aparências e por necessidades estritamente materialistas é então o tema da tragédia de Dido. Não basta um amor espiritual puro entre duas almas apaixonadas.
O deus Mercúrio já havia alertado Eneias do seu dever na Itália, como tratado no capítulo Elisa. Durante a catábase de Eneias, seu pai o revela que Lavínia será sua futura esposa, que juntos irão gerar um filho chamado Sílvio Albano, já na velhice de Eneias, e que este Sílvio Albano será educado para ser rei nas selvas espessas, e dará origem aos reis de Alba Longa:

siluius, Albanum nomen, tua postuma proles,
quem tibi longaeuo serum Lauinia coniunx
educet siluis regem regumque parentem,
unde genus Longa nostrum dominabitur Alba. 

(Eneida, Livro VI - v. 763-766)

Em um outro momento da narrativa, quando Lavínia estava queimando incensos nos altares junto com seu pai Latino, acontece um terrível presságio. De repente as chamas passaram a queimar os cabelos da jovem Lavínia, seus belos ornamentos, seu diadema de pedras preciosas e o fogo espalha pelos outros aposentos do templo. 
Aquela visão causou horror e espanto naqueles que presenciaram a cena. Para Lavínia era um presságio de fama e prestígio. Mas para o povo este agouro indicava muitos trabalhos e guerra.

Praetera, castis adolet dum altaria taedis
et iuxta genitorem adstat Lauinia uirgo,
uisa (nefas!) longis comprendere crinibus ignem
atque omnem ornatum flamma crepitante cremari
regalesque accensa comas, accensa coronam
insignem gemmis; tum fumida lumine fuluo
inuolui ac totis Vulcanum spargere tectis.
Id uero horrendum ac uisu mirabile ferri:
namque fore illustrem fama fatisque cabebant
ipsam, sed populo magnum portendere bellum.

(Eneida, Livro VII - v. 71-80)

Preocupado com aquele presságio, Latino promove uma consulta com seu pai adivinho, Fauno, na selva mais densa da região. Latino então oferece o sacrifício de cem ovelhas tenras com a intenção de ver o futuro. Fauno se deita sob as peles das ovelhas sacrificadas e dá o vaticínio para o filho. Fauno pede para Latino esquecer esta ideia de dar Lavínia para um marido latino, pois um genro estrangeiro irá levá-la, cujos filhos e netos irão submeter cem povos sob o império de leis rigorosas e sábias. Este império irá abranger todo o curso do sol, desde o oceano nascente até o poente. 

"Ne pete conubiis natam sociare Latinis;
o mea progenies, thalamis neu crede paratis;
externi uenient generi, qui sanguine nostrum
nomem in astra ferant quorumque a stirpe nepotes
omnia sub pedibus, qua Sol utrumque recurrens
aspicit Oceanum, uertique regique uidebunt".

(Eneida, Livro VII - v. 96-101)

Em capítulos futuros pretendo desdobrar a atuação das deusas na Eneida. O próximo capítulo irá ser sobre as Fúrias, Alecto, Tisífone e Megera. O seguinte irá abordar o diferente papel da deusa Vênus sob o herói troiano comparado com Atena  e Aquiles/Odisseu e no mês de junho, obviamente, tratarei de Juno. 
Por enquanto é sábio observar o cuidado de Virgílio no trato com as potências do destino, que, segundo Maquiavel, não podem ser ignoradas. Para Maquiavel o destino controla metade dos eventos ocorridos em nossas vidas, cabendo ao homem de virtude aceitar este poder ulterior que está além do seu ego, para, em momento propício concedido pela vida e pelo destino, aproveitar as oportunidades.
Eneias e Lavínia são personagens virtuosas e que no entanto não possuem nenhum poder contra a vontade dos deuses. A satúrnia Juno passara a odiar os troianos desde o famoso julgamento de Páris, cuja decisão de escolher Vênus como a mais bela entre as deusas decepcionara Juno. Desde então a satúrnia tem trabalhado com vigor para prejudicar todas as ações dos troianos e isto também está presente na Eneida.
Juno não se conforma com a chegada de Eneias ao Lácio. A esposa de Júpiter então percebe que seus poderes de nada valem contra os troianos e decide apelar para forças inferiores. É célebre a passagem em que Juno diz que já que no céu nada alcanço, recorro às potências do inferno. Uma vez que a deusa não pode dobrar o destino férreo, que dita a união entre Lavínia e Eneias, Juno decide ao menos retardar a ação de Eneias no Lácio e desgastar suas reservas de guerreiros.
O plano sombrio de Juno é fazer com que o casamento do troiano com a latina seja feito em bodas de sangue, e que o povo sofra o ônus dessa união indesejada pela deusa. Como madrinha das bodas, segundo Juno, terão a deusa da guerra Belona.
Juno diz que Eneias será outro Páris e que outra vez as chamas das bodas de Troia irá incendiar a cidade. Os romanos portavam uma tocha nos matrimônios que passou a simbolizar o próprio matrimônio. 
Assim, Juno desce até o inferno, furiosa, em busca das irmãs assustadoras, neste caso, Alecto infernal, que se delícia apenas com traições, crimes negros e guerras infinitas. Até Plutão detesta Alecto e suas irmãs, Tisífone e Megera esquivam-se dela:

Ast ego, magna Iouis coniunx, nil linquere inausum
quae potui infelix, quae memet in omnia uerti,
uincor ab Aenea. Quod si mea numina non sunt
magna satis, dubitem haud equidem implorare quod usquam est:
flectere si nequeo superos, Acheronta mouebo.
Non dabitur regnis, esto, prohibere Latinis,
atque immota manet Fatis Lauinia coniunx:
at trahere atque moras tantis licet addere rebus,
at licet amborum populos exscindere regum.
Hac gener atque socer coeant mercede suorum:
sanguine Troiano et Rutulo dotabere, uirgo,
et Bellona manet te pronuba. Nec face tantum
Cisseis praegans ignes enixa iugales;
quin idem Veneri partus suus et Paris alter
funestaeque iterum recidiua in Pergama taedae.
Haec ubi dicta dedit, terras horrenda petiuit;
luctificam Allecto dirarum ab sede dearum
infernisque ciet tenebris, cui tristia bella
iraeque insidiaeque et crimina noxia cordi.
Odit et ipse Pluton, odere sorores
Tartareae monstrum: (...)

(Eneida, Livro VII - v. 308-329)

Juno pede para a virgem da noite usar seus poderes de semear a discórdia até entre irmãos muito unidos para arrumar um jeito de desfazer este trato, este casamento de Eneias com Lavínia, e espalhar a guerra entre latinos, troianos e rútulos. 

"Hunc mihi da proprium, uirgo sata Nocte, laborem,
hanc operam, ne noster honos infractaue cedat
fama loco, neu conubiis ambire Latinum
Aeneadae possint Italosue obsidere fines.
Tu potes unanimos armare in proelia fratres
atque odiis uersare domos, tu uerbera tectis
funereasque inferre faces, tibi nomina mille, 
mille nocendi artes. Fecundum concute pectus, 
disice compositam pacem, sere crimina belli;
arma uelit poscatque simul rapiatque inuentus".

(Eneida, Livro VII - v. 331-340)

Alecto conhece artes mil e variadas de fazer mal. Então a virgem da noite vai até o belo Lácio e à morada dos laurentes, onde encontram-se o rei Latino e a rainha Amata. Alecto infiltra-se de mansinho no leito de Amata que já estava um pouco nervosa com a chegada dos troianos e o casamento prometido de Lavínia com o rei dos rútulos, Turno. 
Enquanto Amata queixava-se e gemia sozinha no quarto, Alecto usa seus poderes malignos para envenenar ainda mais a alma da rainha. O vírus da maldade penetra sem ser sentido em todos os fracos sentidos da rainha. Desse modo, inflamada pela influência malevolente de Alecto, Amata vai ter com Latino, e chora para o marido sobre as bodas futuras com o frígio Eneias.
Amata, inconformada, diz a Latino: "Senhor, vai dar Lavínia como esposa para este teucro sem pátria? Você não tem pena da própria filha nem piedade da pobre mãe? O pastor frígio com essas estratégias não entrou em Esparta e a bela filha de Leda roubou para levá-la até Troia? Teus juramentos e tua fé de nada valem? E a sua palavra empenhada com Turno?"
Amata ainda argumenta que se Lavínia deve casar-se com um estrangeiro, que Turno, por sua vez, também é estrangeiro, sendo ele descendente de Ínaco e Acrísio de Micenas. Contudo estes questionamentos e pedidos de Amata não surtiram nenhum efeito no já decidido rei Latino.

"Exsulibusne datur ducenda Lauinia Teucris,
o genitor, nec te miseret nataeque tuique?
Nec matris miseret, quam primo Aquilone relinquet
perfidus alta petens abducta uirgine praedo?
An non sic Phrygius penetrat Lacedaemona pastor
Ledaeamque Helenam Troianas uexit ad urbes?
Quid tua santa fides, quid cura antiqua tuorum
et consanguineo totiens data dextera Turno?
Si gener externa petitur de gente Latinis
idque sedet Faunique premunt te iussa parentis,
omnem equidem sceptris terram quae libera nostris
dissidet externam reor et sic dicere diuos.
Et Turno, si prima domus repetatur origo,
Inachus Acrisiusque patres mediaeque Mycenae".

(Eneida, Livro VII - v. 359-372)

Agora iremos dar um pulo até o Livro XII onde o plano de Juno já surtira alguns efeitos e onde começam os preparatórios para o duelo entre Eneias e Turno para decidir quem irá se casar com a princesa Lavínia. Amata, dominada pela influência de Alecto acaba com cometer suicídio levando a filha ao desespero. 
Como no Livro XII encerram-se muitos aspectos decisivos para a narrativa e o contexto da viagem de Eneias, prefiro deixar esta parte para um momento mais oportuno, contando que estou sendo meio redundante, uma vez que parto do pressuposto que o leitor já leu ou está lendo a Eneida. Por isso me acho muito repetitivo às vezes pois sei que o leitor esta a par do que estou dizendo. 
Concluindo esta breve empreitada digo que não acho fácil a leitura da Eneida. Estou lendo esta obra há praticamente seis meses e ainda não a terminei. Para fazer uma leitura que respeite toda a tradição e história desta obra não posso ler a Eneida como leio uma notícia de jornal um um post no Facebook. 
As vezes fico mais de quinze dias para ler um único Livro. Mas uma leitura estrutural, que vai considerar todos os pormenores e detalhes da obra, e que requerem atualização e pesquisa constante, uma vez que a obra não foi escrita em língua portuguesa, mas em latim. 
Antes de acusar um autor de machista, fascista, chauvinista ou quaisquer destes rótulos permeantes que são como vírus nas acadêmias é imprescindível a leitura, o resumo, a responsabilidade com um texto que atravessou centenas de anos para chegar até nós, e é fonte de deleite até hoje. Reduzir uma obra a um único aspecto, seja ele qual for, é um preconceito e uma limitação cognitiva. Uma imperdoável falta de sensibilidade poética para aqueles que estão acostumados a consumir textos doutrinantes e sabem falar muito, mas não aprenderem o sentido e a virtude da audição. 


Carlos Henrique Barbosa - Lavínia ou uma cidade chamada Roma



Thursday 16 March 2017

Une Charogne

Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

Tout cela descendait, montait comme une vague
Ou s'élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.

Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.

Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.

Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché, 
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection, 
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Apres les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!

Charles Baudelaire - Une Charogne