Friday 24 February 2017

Sibila

A Epopeia é um gênero literário composto em versos longos, rimados cujo conteúdo principal é apresentar modelos morais de comportamentos a serem seguidos. A Epopeia é o tipo de narração que exalta os grandes feitos de um povo. Segundo Aristóteles, a Epopeia é o gênero literário pautado pela imitação de homens de moral superior. 
Essas são as primeiras definições didáticas que se podem encontrar numa pesquisa superficial pela internet ou numa aula acadêmica de caráter doutrinante. A Epopeia não é um gênero literário para exaltar os grandes feitos de um povo ou nação. Seria absurdo considerar a análise aristotélica hermenêutica e filosoficamente: qual ou quais tipos de grandes feitos os argivos realizaram ao saquear a cidade vizinha de Troia, estuprar as ilíadas como o Neoptolemo fez com Andrômaca após o assassinato de Hector, roubar os tesouros dos troianos e reduzir sua cidade a cinzas? 
E quais foram os grandes feitos dos portugueses narrados na obra Os Lusíadas senão a conquista de outros povos orientais e a imposição do comércio europeu por intermédio de Vasco da Gama? Os grandes feitos dos portugueses foram, portanto, roubar, matar e escravizar outros povos? Queremos acreditar que com esta vasta fortuna crítica concernente aos clássicos, que isto não pode ser verdade.
Vivemos na era da superficialidade. As pessoas podem saber de tudo que lhes for de interesse, basta digitar um conjunto de palavras num navegador, e o sistema virtual responde, com algumas linhas ou duas páginas de texto. Isso não é suficiente, outrossim viveríamos numa geração de grandes gênios e transformadores da sociedade. A efemeridade das informações, seu caráter volátil as tornam produtos de consumo curtos e insignificantes, rapidamente digeridos e pedindo outro cardápio. 
Ter uma aula sobre literatura clássica, ou ler um texto na internet não torna os indivíduos especialistas no assunto. Hoje em dia qualquer um pode falar cheio de orgulho que leu tais e tantas e obras, sendo que na verdade apenas os resumos foram observados. O conteúdo acadêmico também não está livre da superficialidade, quando se tratam assuntos de extrema complexidade com a única proposta de avaliar os alunos com provas. 
Todos conhecem uma frase da Eneida, todos podem ler um resumo da obra e com isso ficarem satisfeitos tendo a posse de elementos desconexos de uma obra histórica de ampla complexidade. Conhecer um mito narrado na Eneida não significa que o aluno ou professor leram de fato a obra. Conhecer um mito da Eneida é o mesmo que observar uma única parte de uma pintura por uma foto. 
Em uma aula recente, um professor disse que a Sibila era uma bruxa dominada por potências infernais, e que pregava vaticínios, leituras sobre o futuro, além de anunciar o fim dos tempos. Isso pode ser verdade, se considerarmos a informação como didática, desapegada de qualquer senso crítico. Se for considerado a Sibila como bruxa demoníaca do mesmo modo que se considera a epopeia como a narração dos grandes feitos de um povo. (se considerarmos os deuses greco-romanos como demônios por extensão de sentido).
A Sibila pode ser uma bruxa, pode ser pagã e pode ser aliada do Demônio, dentro da recente cultura cristã, como se observa no hino Dies Irae, sobre o fim do mundo. Só que antes do cristianismo existia uma outra cultura, e, obviamente uma outra Sibila, da qual pretendo discorrer agora usando o Livro VI da Eneida.
Dentro do contexto da Eneida, a Sibila é simplesmente uma virgem sacerdotisa do Deus Apolo, cuja função da personagem dentro da obra é guiar Eneias pelos infernos. No Livro V, Eneias é aconselhado por seu pai Anquises em um sonho, que, guiado pela Sibila, deve descer até o Orco para procurar a alma do pai nos Campos Elísios para então saber qual o futuro do povo troiano no Lácio. 
Para chegar até os infernos, Eneias vai até a cidade de Cumas, na Campânia, onde o herói troiano deve encontrar o lago Averno, entrada dos infernos. Nos primeiros versos é narrado a visita de Eneias aos altos cumes onde fica o templo de Apolo e a gruta da horrorosa Sibila, reveladora do futuro:

At pius Aeneas arces, quibus altus Apollo
praesidet, horrendaeque procul secreta Sibyllae
antrum immane petit, magnum cui mentem animumque
Delius inspirat uates aperitque futura.

(Eneida, Livro VI - versos 9-12)

Leia-se "horrorosa" não no sentido físico, mas psicológico. A palavra latina "horrendaeque" poderia ser traduzida também como assustadora, pavorosa, horripilante, etc. A seguir Eneias e sua gente chegam ao bosque da Diana Trívia, ou Hécate, deusa infernal venerada nas encruzilhadas, local exato do templo de Apolo. Neste templo há várias esculturas que deleitam Eneias e sua gente, e numa delas está narrado o mito do escultor Dédalo, que para fugir dos domínios de Minos resolveu criar asas e voar até ao céu. Prodígio de Virgílio, uma escultura falando de um escultor. 
Eneias continua a observar com grande interesse as esculturas gravadas, onde está a história da traição de Pasífaa, esposa de Minos que se deitou com um touro, dando origem ao Minotauro. A frustração de Dédalo ao não conseguir esculpir a história do próprio filho Ícaro ao tentar voar para os céus com asas de cera. Contudo, Dédalo gravara o próprio fracasso de não conseguir esculpir um evento que se lhe tocava demais o coração. 
Eneias estava estupefato com a qualidade dessas esculturas, e, não fosse Acates retornar com a filha de Glauco, A Sibila, certamente ele teria ficado muito mais tempo apreciando estas maravilhosas obras, este espetáculo, como é descrito no referido capítulo.
A primeira coisa que a vate de Apolo diz a Eneias é que não é hora propícia para se entreter com arte, e que é dever do filho de Anquises imolar sete touros e sete ovelhas perfeitos, os mais belos disponíveis:

Deiphobe Glauci, fatur quae talia regi:
"Non hoc ista sibi tempus spectacula poscit;
nunc grege de intacto septem mactare iuuencos
praestiterit, totidem lectas more bidentes".

(Eneida, Livro VI - versos 36-39)

"Deiphobe", em português "Deífobe" significa a que afugenta o inimigo. Ao pé da caverna de Cumas, região ocidental da Hespéria ou Itália, uma enorme caverna se abre, com cem portas imensas e cem passagens subterrâneas, por onde a voz da virgem sacerdotisa de Apolo ecoa. O deus Apolo parece tomar posse do corpo da virgem, pois ela dizia, eis o deus! (deus, ecce, deus!), a aparência física da Sibila se transforma, seus cabelos ficam desgrenhados, os sons mais fundos, arquejante e o coração tomado por uma fúria incontrolável.
A Sibila, possuída pelo deus Apolo, diz a Eneias para adiantar os votos e as preces caso o contrário os portões não vão se abrir. Os troianos sentem o medo penetrar até em seus ossos:

ante fores subito non uultus, non color unus,
non comptae mansere comae; sed pectus anhelum,
et rabie fera corda tument; maiorque uideri
nec mortale sonans, afflata est numine quando
iam propiore dei. "Cessas in uota precesque,
Tros", ait, "Aenea? Cessas? Neque enim ante dehiscent
attonitae magna ora domus". Et talia fata
conticuit. Gelidus Teucris per dura cucurrit
ossa tremor funditque preces rex pectore ab imo.

(Eneida, Livro VI - versos 47-55)

Destarte, Eneias promete construir um templo de mármore para Diana e Apolo, além de um santuário para a Sibila. Então as portas do templo se abrem e a Sibila dá para Eneias um vaticínio sobre sua estadia na região do Lácio. A Sibila diz que a guerra vai tingir os rios Tibre e Xanto de sangue dos beligerantes. A Sibila assegura que a causa deste conflito, como sempre, é a mulher, neste caso Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata, prometida para o guerreiro rútulo Turno. Entretanto, o pai do rei Latino, Fauno, adverte o filho que Lavínia deve casar-se com um estrangeiro, no caso Eneias.
Nos próximos capítulos iremos nos debruçar sobre os aspectos da princesa Lavínia e da sua relação com os Fados, ou destino. Cumpre saber aqui que a princesa dos latinos não é outra Helena de Troia. A profecia da Sibila ao falar que a culpa como sempre é das mulheres, pode estar fazendo referência ao destino, comandado pelas Parcas e pela atuação direta da satúrnia Juno, deusa inimiga notória dos troianos.

(...) Teucris addita Iuno
usquam aberit, cum tu supplex in rebus egenis
quas gente Italum aut quas non oraueris urbes!
Causa mali tanti coniunx iterum hospita Teucris
externique iterum thalami.

(Eneida, Livro VI - versos 90-94)

Alfim, Eneias pede para Sibila lhe mostrar a entrada para as portas sagradas, e conduzi-lo até o pai Anquises. Neste pedido Eneias cita os heróis que foram até os infernos e retornaram: Orfeu tentando retirar a esposa dos Manes dos Infernos, Pólux alternando com o irmão Castor a estadia no inferno mil vezes, Teseu e Hércules.
É neste momento que a Sibila dá uma resposta bem conhecida para Eneias. A virgem de Apolo diz a Eneias que é muito fácil ir para o inferno, que a porta está aberta de dia e de noite. Mas voltar para a claridade é todo o trabalho mais árduo.

(...) "Sate sangiune diuum,
Tros Anchisiade, facilis descensus Auerno:
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed reuocare gradum superasque euadere ad auras,
hoc opus, hic labor est.

(Eneida, Livro VI - versos 125-129)

A Sibila então ensina para Eneias quais recursos deve usar para poder ir e voltar dos infernos em segurança. Primeiro o herói deve encontrar o ramo de folhas áureas escondido sob a copa de uma árvore densa e deve dedicar este ramo de ouro para Prosérpina, esposa de Plutão. Em seguida Eneias deve fazer o ritual funerário do companheiro Miseno e sacrificar animais de cor negra: quatro novilhos negros, uma ovelha para as fúrias e uma vaca virgem para Prosérpina. Obedecendo todas as etapas do procedimento funerário e do ritual macabro, Eneias sepulta o amigo Miseno. Logo duas pombas brancas, sinais da mãe de Eneias, Vênus, aparecem e o guiam pela floresta escura até ele encontrar o ramo de ouro.
A Sibila então conduz Eneias para a entrada dos infernos e, juntos, entram pelo negrume da noite (ibant obscuri sola sub nocte per umbram, literalmente, iam obscuros sob a noite solitária pela sombra).
Já no átrio dos infernos, nas fauces do Orco, a primeira coisa que eles veem é a moradia dos Remorsos, do esquálido Medo, Enfermidades de aspecto soturno, a Velhice ominosa e a Fome má conselheira. A Pobreza depravante, As Mazelas, visões de horror, mais a Morte, seguida do Sono, irmãos gêmeos, os insuportáveis Trabalhos e os Gozos proibidos da mente. A Guerra letal do outro lado, além das Fúrias e a negra Discórdia, a pentear os cabelos de cobras vivas.
Fora estes, outros monstros se encontram por lá: biformes Cilas, Briareu de cem braços, os indomáveis Centauros, a Hidra de Lerna mais a Quimera a lançar fogo pela boca abrasante, as terríveis Górgonas juntas das funestas Harpias, a alma do imenso Gerião de três corpos.
Eis que nos surge um caractere especial e muito estimado na obra de Virgílio: Eneias fica com medo, do mesmo modo que ficou assustado com a possessão divina da Sibila por Apolo. Em vão Eneias tenta sacar da espada e matar aqueles monstros, mas a Sibila o adverte de que são apenas espíritos imaterializados.

Aeneas strictamque aciem uenintibus offert,
et, ni docta comes tenues sine corpore uitas
admoneat uolitare caua sub imagine formae,
irruat et frustra ferro diuerberet umbras.

(Eneida, Livro VI - versos 291-294)

A partir daqui se inicia o caminho que leva até o rio Aqueronte e o barqueiro Caronte, condutor das almas até o reino dos mortos. O barqueiro Caronte é o guardião das águas do rio Aqueronte, com o corpo todo coberto de sujeira, a barba grisalha até o peito, sem nenhum tipo de tratamento. Seus olhos brilham em fulgores, sórdido manto pende de seus ombros, mal sustentado por um nó. O velho barqueiro segura um remo e acomoda o negro barco. Milhares de sombras, almas são procuradas por Caronte, mães, seus maridos, heróis de alma grande privados da vida, belos jovens, virgens solteiras e crianças.
Toda esta multidão de almas estão apinhadas na praia do inferno, pedindo com mãos suplicantes para serem transportadas por Caronte para a outra margem do rio. Admirado com aquela visão, Eneias questiona a Sibila: O que fazem todas estas almas desencarnadas nesta margem do rio? Qual o pedido das almas? Porque algumas são transportadas à outra margem e outras não?

(...) "O uirgo, quid uult concursus ad amnem?
Quidue petunt animae, uel quo discrimine ripas
hae linquunt, illae remis uada liuida uerrunt?

(Eneida, Livro VI - versos 318-320)

A Sibila explica brevemente para Eneias que esta multidão de almas desencarnadas rechaçadas pelo barqueiro Caronte não podem ser transportadas para a outra margem do rio porque seus corpos ficaram insepultos, sem túmulo, cadáveres expostos. É vedado ao barqueiro Caronte transportar este tipo de alma que os ossos ficaram insepultos. As almas desencarnadas dos insepultos ficam vagando durante cem anos sem parar ao redor desta margem da praia até que possa ser admitida sua entrada no reino dos mortos.
Esta é a terrível profecia dos primeiros versos da Ilíada de Homero, que os corpos dos heróis fiquem insepultos a mercê de cães carniceiros e aves de rapina. Além do dano corporal, a alma do morto ficaria vagando atormentada pelo mundo dos mortos, sem poder ser transportada em paz para a outra margem do rio. Vejamos essa fala da virgem de Apolo:

Haec omnis, quam cernis, inops inhumataque turba est;
portitor ille Charon; hi, quos uehit unda, sepulti.
Nec ripas datur horrendas et rauca fluenta
transportare prius quam sedibus ossa quierunt.
Centum errant annos uolitantque haec litora circum;
tum demum admissi stagna exoptata reuisunt.

(Eneida, Livro VI - versos 325-330)

De rosto triste, e privados das honras funerárias, estão os amigos de Eneias Leucáspide e Oronte, este chefe da esquadra troiana. Seus barcos afundaram nas águas. Ali perto também encontra a alma do piloto Palinuro. Eneias conversa com Palinuro e este lhe discorre sobre as causas de sua morte além de pedir para seu corpo ser sepultado apropriadamente. A Sibila promete a Palinuro que as devidas honras funéreas serão feitas.
Ao perceber Eneias e Sibila vagando por aquelas paragens, Caronte os questiona sobre o motivo de estarem ali e diz não poder transportar corpos com vida até o reino dos mortos. Caronte fala que já cometeu o erro de transportar Hércules, Pirítoo e Teseu. Hércules arrastou Plutão acorrentado e Pirítoo e Teseu tentaram raptar Prosérpina.
A maga Sibila acalma o barqueiro dizendo que Eneias piedoso não foi até lá sequestrar a esposa de Dite e que seu intento é apenas encontrar a alma desencarnada do pai Anquises. Então a maga Sibila lhe mostra o ramo áureo, acalmando o barqueiro e fazendo-o transportar os visitantes sem mais delongas até a outra margem do rio.
Na outra margem do rio, em terreno encharcado de lodo esverdeado eles encontram o cão Cérbero, abertas as três gargantas, uivando. Logo a maga Sibila lhe atira um pedaço de torta de mel, preparada anteriormente com um narcótico que coloca o cão para dormir.
Nesta região estão as crianças que perderam a vida precocemente. Os condenados por crimes. Minos, antigo rei de Creta, agora é um dos juízes do inferno, presidente do corpo de sombras. Minos convoca a todas as almas desencarnadas e as inquire sobre seus crimes cometidos em vida. Também estão ali os suicidas.
Não muito distante dali estão os Campos Lugentes ou campos da tristeza (lugere em latim significa "chorar"), esta é a região dos infernos onde estão os que morreram por desditoso amor. Como tratado com maiores detalhes no capítulo anterior, Elisa, nos Campos Lugentes estão as vítimas da peste do amor. Por lá Eneias viu as almas  de Prócris e Fedra, Erifile e mais Pasífaa e Evadne, seguidas da bela Laodâmia e de Ceneu, jovem que fora transformado em mulher. Entre estas sombras a vagar pelos Campos Lugentes, Eneias viu a alma da fenícia Dido com sua recente ferida.
Um pequeno adendo sobre estas almas seria fortuito. Prócris era ciumenta e seguiu secretamente o marido numa caçada. Por acidente Prócris foi morta pelo próprio marido. Fedra apaixonou-se pelo seu próprio enteado e não podendo suportar a situação acabou enforcando-se. Erifile levou à morte do próprio marido, Anfiarau, e foi assassinada pelo próprio filho, Alcméon. Pasífaa, fora raptada e teve amores secretos com um touro gerando o filho Minotauro. Evadne se suicidou inconformada com a morte do marido Cafaneu. Laodâmia que após ficar viúva pediu para ver a alma do amado marido por algumas horas, após as quais decidiu segui-lo até o reino dos mortos. Ceneu primeiro foi mulher, mas Netuno o transformou em um homem imbatível. Não podendo matar Ceneu, os Centauros o soterraram sob troncos de uma árvore. Após a morte Ceneu transformou-se novamente em mulher. Sobre a fenícia Dido leia o capítulo anterior, Elisa.
Adiante, Sibila e Eneias chegam ao campo onde estão as almas dos heróis. Tideu, pai de Diomedes, o forte Partenopeu mais o tácito Adrasto. Infinitos troianos mortos na guerra dos dez anos contra os argivos, são eles Glauco, Medonte, os três filhos de Antenor, Polibotes, Tersíloco e por último Ideu.
Os fantasmas cercaram Eneias no Inferno e tentam acompanhá-lo para inquirir sobre o motivo da sua descida até lá. O troiano Eneias então avista o espírito de Deífobo, filho de Príamo, ambas as mãos decepadas, o rosco riscado de cicatrizes, perdidas as duas orelhas e o nariz deformado e feio. Deífobo tentava esconder as feridas e com muito custo Eneias o identifica e, em tom amigável lhe fala: Deiphobe armipotens, genus alto a sanguine Teucri, quis tam crudeles optauit sumere poenas? (valoroso Deífobo, sangue precioso dos troianos, diga-me quem te marcou desta forma com tanta crueldade? v. 499-500).
Deífobo responde que o Destino fatal e a execrável maldade de Helena o deixaram assim mutilado. Bonita lembrança, diz Deífobo, sendo irônico com a situação: Sed me Fata mea et scelus exitiale Lacaenae his mersere malis; illa haec monumenta reliquit. (v. 511-512). Deífobo casa-se com Helena após a morte de Páris. Helena acabou dando sinal com uma tocha acesa na mão para os argivos invadirem os muros de Troia. Helena entorpeceu Deífobo e outros guerreiros troianos com drogas, e, quando estes estavam dormindo, retirou suas armas e deu sinal para Menelau.
Após muito chorar com as histórias do compatriota, a sacerdotisa de Apolo exorta Eneias a partir. Deífobo termina o seu discurso e dilui-se nas sombras.
Eles chegaram a um ponto extremo onde o caminho se divide. Para a direita está o palácio de Plutão rumo ao Elísio. Na esquerda as escuras paragens do Tártaro onde os maldosos recebem as penas pelos crimes cometidos em vida. Em frente ao caminho da esquerda se vê uma porta gigante de fortes colunas, de aço tão duro que nem as espadas dos deuses poderiam quebrá-las. Ao lado há uma torre onde a Fúria Tisífone se encontra, com um manto coberto de sangue. Esta Fúria é a responsável por punir os culpados. Tisífone nunca fecha os olhos, de noite e de dia sempre a escrutar, vigilante.
Ouve-se frequentes gemidos, açoites vibrando com raiva, barulhos de metal contra a superfície, barulho infernal de grilhões sendo arrastados. Eneias pergunta para a filha de Glauco quais tipos de crimes estes espíritos cometeram e quais as penas a eles impostas que provocam tantos lamentos e dores: Quae scelerum facies, o uirgo, effare; quibusue urguentur poenis? Quis tantus plangor ad auras? (v. 560-561).
A vate dos deuses responde Eneias que ninguém puro pode entrar nestes domínios de criminosos. Radamanto de Creta exerce o comando duríssimo deste lugar. Ele interroga os culpados e os pune, os malignos, obriga a confessar os delitos praticados em vida, com dolo, protelando o castigo até ao último momento da morte. Depois, Tisífone salta sobre os criminosos e os açoita severamente com seu chicote. No Tártaro se encontram os Titãs, seis filhos do Céu e da Terra, os Aloidas que revoltaram-se contra Júpiter e decidiram enfrentá-lo e Salmoneu, o mortal que com patadas e ranger de rodas tentava imitar os trovões e as tempestades de Júpiter. Júpiter fulmina Salmoneu por tentar imitá-lo.
Outros criminosos famosos também estão no Tártaro e a Sibila os aponta e os descreve para Eneias. Tício, gigante morto por Júpiter após tentar violar Latona. Os Lápitas, o rei Pirítoo e seu filho Exíone, este tentou violentar Juno, sofrendo severa punição de Júpiter. A mais velha das Fúrias, Alecto, está de guarda perto dali. Sibila termina dizendo que no Tártaro estão aqueles que nutriram ódio pelos próprios irmãos, aqueles que agrediram os pais, os que descuidaram dos clientes, os avarentos, quem morreu no adultério, os partidários da guerra contra seus próprios senhores, os revolucionários.
Sibila diz que não adianta Eneias querer saber todos os tipos de penalidades para cada crime. Uns rolam grandes penhascos, das rodas dos carros outros pendem. Teseu sentado se encontra e sentado estará sempre, todo infeliz. Teseu tentou violentar Helena. Com estes exemplos aprenda a acatar o mandado dos deuses, diz Sibila para Eneias.
Após esta horrenda jornada pelo Tártaro, Sibila e seu companheiro Teucro chegam até a morada das almas afortunadas e felizes, os Campos Elísios. Dos moradores desta região, alguns se exercitam em campos de grama ou se divertem de várias maneiras na areia dourada, outros em coro contornam, ao ritmo de belas cantigas. Lá está o sacerdote da Trácia, Orfeu, a arrastar a toga muito bela em consonância com a lira de sete cravelhas, Orfeu canta e toca o instrumento com palheta de marfim.

fortunatorum nemorum sedesque beatas.
Largior hic campos aether et lumine uestit
purpureo, solemque suum, sua sidera norunt.
Pars in gramineis exercent membra palaestris,
contendunt ludo et fulua luctantur harena;
pars pedibus plaudunt choreas et carmina dicunt.
Nec non Threicius longa cum ueste sacerdos
obloquitur numeris septem discrimina uocum,
iamque eadem digitis, iam pectine pulsat eburno.

(Eneida, Livro VI - v. 639-637)

A Sibila então questiona Museu sob o paradeiro da alma de Anquises, que estava logo por ali, com vivo interesse se encontrava a examinar umas almas num prado frondoso, almas destinadas à luz, entre as quais ele viu toda a linhagem futura de seus descendentes. Logo que Anquises percebe Eneias a caminhar pelo prado florido, tomado de júbilo, lhe estende as mãos, lágrimas compassivas a cair e fala ao filho emocionado que está muito contente de revê-lo e saber que conseguiu chegar até um lugar tão obscuro para ver o próprio pai. Anquises deseja apenas ouvir a voz do filho por um instante efêmero, gastar alguns minutos da infinita temporalidade em colóquios com o amado rebento.
Eneias tenta abraçar o espírito de Anquises três vezes, chorando por ver o pai e pela frustração de não conseguir tocá-lo novamente. Nisso, Eneias percebe um pequeno bosque no fundo do vale ameno, de árvores inquietas com a brisa leve, um sereno recolhimento que o rio Letes refrescado ao longe.
Ao redor das águas do rio Letes paira uma multidão de espíritos, como um enxame de abelhas.
Pasmo com aquela visão e ignorando o porque de tudo aquilo, Eneias pergunta o nome do rio e o motivo de tão grande conglomerado de gentes a povoar suas plácidas margens. Então o pai lhe responde que aquelas almas ao redor do rio Letes estão fadadas a reencarnar, e para tal precisam beber as claras águas do rio Letes para obterem o esquecimento total do que na vida anterior fizeram. Aqui nós temos um breve renascimento das filosofias platônica, órfica e pitagórica, sobre o mundo dos espíritos e a reencarnação das almas:

Tum pater Anchises: "Animae, quibus altera fato
corpora debentur, Lethai ad fluminis undam
securos latices et longa obliuia potant.

(Eneida, Livro VI, v. 713-715)

Atônito, Eneias pergunta ao pai se é crível que alguns espíritos queiram ainda voltar à terra para encarnarem-se em corpos materiais. Que insano desejo de a luz do dia rever, e reiniciar as canseiras da vida?

"O pater, anne aliquas ad caelum hinc ire putandum est
sublimes animas iterumque ad tarda reuerti corpora?
Quae lucis miseris tam dira cupido?"

(Eneida, Livro VI, v. 719-721)

O pai promete explicar para o filho e curá-lo de sua cegueira. Desde o início o santo espírito dá vida aos céus, a terra extensa, as campinas onduladas, o globo da lua resplandecente e as estrelas titânias. Inerente aos membros, a mente agira a matéria e se mistura ao conjunto das coisas, vai dizendo Anquises.
Em vida, os corpos temem, desejam, padecem de suplícios e gozos, cegos à luz, confinados nas trevas de suas clausuras materiais. Nem mesmo quando se despem do corpo físico perdem as aflições e os vícios deste corpo terreno.

Igneus est ollis uigor et caelestis origo
seminibus, quantum non noxia corpora tardant
terrenique hebetant artus moribundaque membra.
Hinc metuunt cupiuntque, dolent gaudentque, neque auras
discipiunt clausae tenebris et carcere caeco.
Quin et supremo cum lumine uita reliquit,
non tamen omne malum miseris nec funditus omnes
corporae excedunt pestes, penitusque necesse est
multa diu concreta modis inolescere miris

(Eneida, Livro VI - v. 730-738)

Anquises diz que o tempo nos infernos é necessário para limpar a alma destes vícios terrenos, expungir as manchas da alma para o espírito ficar limpo e tornar-se a etérea essência de origem, o fogo do início de tudo. Assim, passados mil anos, um deus convoca as almas às margens do rio Letes para que, esquecidas de tudo o que viveram, possam retornar à vida terrena.
A Sibila então leva Eneias até a multidão de almas prestes a reencarnar na vida terrena enquanto Anquises vai descrevendo os futuros perigos que o filho enfrentará no Lácio e a futura linhagem de Dárdano, incluindo Júlio César e Otaviano Augusto, os Irmãos Graco, os dois Cipiões, etc.
Ao final, Anquises conduz Eneias e a Sibila para a saída dos infernos e explica que há duas Portas do Sono, fazendo alusão ao Canto XIX da Odisseia. uma das portas é córnea de fácil passagem as sombras encontram os sonhos verdadeiros. A outra porta é de puro marfim, de que os Manes se servem, para enviar do céu aparências enganosas. Anquises conduz Eneias e a Sibila para a Porta Verdadeira e imediatamente após a saída, Eneias vai procurar seus companheiros e vai até Caieta ou Gaeta, cidade portuária do Lácio.


Carlos Henrique Barbosa - Sibila ou Uma viagem pelo mundo dos mortos. 


PS: Após reler este capítulo percebi algumas dezenas de erros ortográficos e a falta de um addendum sobre a catábase de Odisseu, que também desce aos infernos. Também vou trazer ad lucem um outro addendum a respeito do momento mais intenso da loucura de Dido, cada adendo vai estar presente no final de cada capítulo. Omnia vincit amor (Virgílio, Éclogas, Livro X, linha 69)













No comments:

Post a Comment