Saturday 24 February 2018

Canto fúnebre

Anoitece. estou sozinha, perdida sobre o vão do prédio surrado pela tormenta. O vento carrega as gris nuvens, a trovoada brilha pelo reflexo do vidro dos edifícios. Bramando gentil e iluminadamente. Nenhuma residência me abriga da chuva; Sinto-me abandonada sobre o vão do prédio surrado pela tormenta. 
A lua poderia nascer por dentre as nuvens que as envolvem. Rezo para alguma estrela brotar no negro céu. Que um táxi pudesse me guiar ao meu amor, seu violão junto dele, os cães extenuados ninando ao seu redor, descanso após um dia de corrida no parque!
Agora é preciso que eu fique onde estou. Perdida entre o asfalto e os carros molhados pra cima e para baixo. Onde fico oculta pelas nuvens e pelas sombras da tempestade. A enxurrada e o temporal gemem fazendo com que eu não ouça a voz do meu amor. 
Meu amado, por que demora tanto? Será que ele esqueceu da sua promessa? Eis o prédio, eis a cidade, eis a enxurrada barulhenta! Você havia prometido estar aqui ao anoitecer; Que digo, por onde andará meu amor? Quero fugir contigo para longe de meu pai e meu irmão, criaturas pretensiosas! Faz muito tempo que nossas famílias são inimigas, mas nós não somos adversários, meu amor. 
Cale-se vendaval! Cale-se um pouco! Enxurradas, o mínimo de silêncio vos peço! Que minha voz reflita por todas esquinas e becos para que meu amor me ouça! Amor, sou eu quem te chama! 
Eis-me aqui junto do prédio e dentro da urbe. Amor eis-me aqui! Por que demora tanto?
A Lua ressurge; todos os vidros brilham, e é possível ver o final da rua. Acabou a energia elétrica. Vou andando pela calçada, e vejo alguns cães parecidos com os seus, mas eles não anunciam a sua chegada. Deverei esperá-lo sozinha aqui. 
Mas quem são aqueles que dormem lá embaixo do asfalto? Será o meu amor? Será meu irmão? Respondam amigos! Não respondem. Uma ânsia tiraniza minha alma. Que digo, morreram! Suas armas estavam quentes do conflito. Irmão, porque assassinou o meu amor? Amor, porque assassinou meu irmão? Vocês me eram tão queridos. Você era o mais lindo de todos. E você era terrível nas brigas. Respondam-me! Escutem minha voz meus bem amados! Que digo, eles estão mudos. Mudos para sempre. Teu seio gélido como a terra. 
Do topo das construções, do concreto do asfalto, das profundezas do esgoto onde ainda há tempestade, falem comigo espíritos dos mortos, falem que não terei nenhum medo! Onde vocês foram buscar repouso? Em que boteco da cidade posso encontrar vocês? Já não tem muita gente nas ruas. Os carros pararam de passar. Nem o vento da tempestade sopra com força. A chuvarada ao longe não me envia nenhuma resposta. 
Sento no banco de uma praça, sucumbida de dor; entregue ao pranto esperarei o raiar do sol. Amigos cavem a sepultura daqueles que se foram e não a cubra com a fria terra até eu chegar! Minha vida se esvai como um sonho; Poderei retornar? Quero ficar aqui, junta àqueles a quem eu amava, aqui á beira da enxurrada que faz a cidade estremecer. 
Quando a noite baixar no centro, e o vento correr pelos sepulcros, lá estará minha alma como o vento para chorar a morte dos meus amigos. O bombeiro me ouvirá do seu posto de plantão. O bombeira irá temer e amar minha voz, porque há de ser doce chorando os meus amigos: ambos me eram tão queridos! O vento sibila pela praça. Um morador de rua me pede um cigarro. Devo morrer por entre becos e esquinas pelo barato. Os sapatos molhados. Queria andar descalça. Mas como posso pisar no chão. Quantas horas até a hora fatal em que possa rever meus amados? Devo caminhar. Uma torrente se aproxima. Sou eu e toda a cidade. Sozinha, perdida sobre o vão do prédio surrado pela tormenta. 


Carlos H. Barbosa - Canto fúnebre 

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