Thursday, 16 October 2025

E a verdade vos libertará

 

Durante muito tempo fiquei me questionando, como na última postagem, a respeito do seu silêncio. Demora algo eterno para que possamos nos dar conta dos próprios erros, antes de sairmos acusando os outros. É conveniente acusá-la. É complicado para um ego revirado de emoções conseguir colocar os dois pés no chão. Vou tentar fazê-lo depois de todo esse tempo.

O reconhecimento é um dos fatores essenciais para a mudança do sujeito. Por exemplo, o jovem Werther apenas se deu conta do seu disparate amoroso ao ver um outro rapaz, jovem e enlouquecido por Carlota. Esse louco de amor era o próprio Werther, ou o futuro que apareceu para ele sobre o reflexo de outro pessoa, então ele finalmente reconheceu que o casal Carlota e Alberto eram seus amigos, e que ele não deveria ter sentimentos apaixonados por ela. A solução de Werther foi pegar duas pistolas emprestadas com Alberto e cometer suicídio.

O reconhecimento pode ser um processo duro, mas é um processo de renovação e ressurreição. Também pode ser fatal, como foi o caso de Werther. Depois de muito tempo e muita leitura, ainda não havia chegado no ponto nevrálgico do meu próprio inconformismo com a separação.

Custa muito para mim reconhecer que no final de tudo, eu acabei matando você. Não daquela morte física, onde o corpo é extinguido e as dores e sucessos são resguardados para um plano além da matéria. Não. Uma morte muito pior do que essa. Eu matei aquilo que havia de inocente, de puro, de angélico, de natural em você, e depois ainda exigia uma explicação sobre isso, até ontem queria saber os motivos pelos quais você tem me desprezado por tantos anos. O absurdo da situação é análogo a um assassino que questiona a vítima, já morta, sobre o motivo dela não falar.

Este reconhecimento surgiu como parte dos meus estudos. Sendo um ciumento e reconhecendo em mim mesmo a natureza vil e mesquinha desse sentimento, me dedico a um projeto de pesquisa onde pretendo analisar a forma enciumada de Bento Santiago a partir do materialismo histórico e dialético. Como você fez o mesmo curso que eu, sabe que os estudos literários fazem mais sentidos quando estão à luz de uma comparação congênere. Pois bem, estou comparando essa forma enciumada de Bento Santiago com uma outra de um romance da primeira fase machadiana.

E foi justamente no romance de Machado de Assis, denominado Ressurreição que descobri e pude reconhecer a sua morte. Félix é a personagem principal da obra, um homem limitado e incapaz de amar verdadeiramente. Seu ciúme de Lívia é tão intenso que tudo o incomoda, um silêncio, um gesto, uma palavra, enfim, tudo é motivo para o ciumento acusar a parceira de algo que sequer passou pela cabeça dela. E Lívia ama Félix profundamente, ao ponto de mesmo estar sendo ferida por acusações e desconfianças, ela ainda continua com ele. Como uma doença degenerativa, o amor de Lívia começa a diminuir, mas mesmo assim ela continua amando Félix.

O clímax da narrativa se passa com uma carta, escrita por um invejoso de Félix e que assume um papel de Iago, onde diz que Lívia havia traído e matado seu finado ex-marido. Félix prefere acreditar na carta do que nela. Na verdade, Félix só queria mais um pretexto, pois ele tinha ciúme até do fato dela respirar.

Félix estava para casar com Lívia quando recebe essa carta e acaba abandonando o plano, frustrando definitivamente a moça. Depois disso, Lívia nunca mais foi a mesma, passou a viver reclusa, triste, pois ela ainda o amava, mesmo havendo se passado mais de dez anos, mas Lívia sabia que não poderia sob hipótese alguma ceder a esse amor, porque junto com este viria o atroz ciúme com seus véus de loucura.

Resumindo, Félix mata Lívia, ele mata uma pessoa inteligente, meiga, delicada e a coloca numa reclusão sentimental, em um retiro para proteção do próprio coração. É desse tipo de morte que até então não havia me dado conta. O mesmo acontece em Dom Casmurro, pois a personagem principal e narrador não-confiável, tem um ciúme do tipo doentio por Capitolina, um ciúme voraz que é capaz de devorar tudo e todos ao redor. Com a diferença que em Ressurreição a morte é do tipo emocional e em Dom Casmurro a morte é corporal. Falemos disso adiante. 

Dentro da minha linha de pesquisa o ciúme não entra como uma questão moral e sim como um assunto do plano material. Bento Santiago enxerga Capitu como parte das suas propriedades, uma extensão do seu capital e, portanto, ela deveria se comportar de acordo com o que a classe social e a condição ditam. Contudo, Capitu é linda, inteligente, comunicativa, sabe se adaptar às dificuldades de classe, corajosa e tudo isso causava uma profunda inveja em Bento Santiago.

Não sei se sentia inveja de você, mas o ciúme, tenho toda certeza. Eu a admirava, pois apesar de ser muito jovem você era dedicada, já sabia inglês, entendia muito mais de gramática do que eu e estava com a mente fresca pois acabara de sair do ensino médio. Sim, eu a admirava e você me admirava ainda mais, mesmo que na época eu fosse muito mais pedante do que inteligente.

Talvez nem você tenha parado para pensar nisso. O motivo de não falar comigo é porque você morreu. Um tipo de morte especial que funciona apenas para mim, que foi o assassino. E o que eu matei em você? Eu matei uma pessoa que acreditava no amor, na confiança, na amizade, no carinho, na reciprocidade das emoções e muito mais do que isso, você era jovem, pura e inocente.

Depois que namoramos por dois anos e meio (acredito eu), você absorveu parte do meu pessimismo, da minha perfídia, do meu cinismo. Há algo de mim dentro de você, pois essa capacidade de resolução, essa decisão de não voltar atrás, parece muito mais comigo do que com você, antes de ter morrido nas minhas mãos. Eu fui cruel sem saber, esmaguei a semente de algo que poderia brotar e dar flores magníficas, como um furacão desvairado, varri aquilo que havia de ingênuo no seu coração.

Se é verdade que há algo de mim dentro de você, também é verdade que há algo de você dentro de mim, pois eu também morri, eu acabei me matando, me consumindo nessas chamas ardentes do ciúme. Ao ponto de mesmo não estando mais contigo, eu ainda sentia ciúme de ti. Não me acuse de tolo, pois demorou muito anos para que eu tivesse essa iluminação, que só pode ser obra divina. Por mim mesmo continuaria remoendo meus sentimentos egoísticos.

Não importa se Capitu traiu ou não Bento Santiago. O que importa é que sabemos que ele é inseguro, medroso, covarde e quer nos convencer e convencer a si mesmo da sua ingenuidade. Palavras que não são minhas, mas de Hellen Caldwell e Roberto Schwarz. Quando der aulas em escolas, vou realizar o julgamento de Bento Santiago em sala de aula, pois ainda me lembro de você ter me dito que no seu período escolar vocês fizeram o julgamento de Capitu (e também o julgamento de Adolf Hitler na aula de história e, curiosamente, você representou a advogada de defesa do genocida. Só você mesma para ter essa liberdade de espírito, sendo judia e representando, no mundo da ficção, a advogada do partido nacional socialista).

O julgamento de Bento Santiago faz muito mais sentido, pois só temos a versão dele, como até então o leitor dos meus escritos tem apenas a minha versão. Bento Santiago se coloca ao mesmo tempo como réu, investigador, advogado e juiz. É uma personagem perigosa com indícios de sadismo e psicopatia, e é inevitável não reconhecer que eu tinha muito desse Dom Casmurro dentro de mim.

Apenas divagando um pouco, a minha hipótese, ancorada nas leituras de Hellen Caldwell sobre o Otelo brasileiro, é a de que Bento Santiago eliminou Capitu fisicamente, só que da mesma forma que não podemos ter certeza sobre a traição, não podemos ter certeza sobre o assassinato. Mas há fortes indícios na obra que uma leitura close-reading, tanto de Dom Casmurro quanto de Otelo me fizeram perceber. Machado de Assis era leitor de Edgar Allan Poe e conhecia os métodos do escritor gótico americano. O bruxo também conhecia Shakespeare e tinha um plano de desconstruir os ideais românticos da fase literária anterior.

Enfim, dizem que de tudo fica um pouco. Ficou um pouco da sua sensibilidade em mim e por isso sou eternamente grato. Aprendi a ser inteligente, disciplinado, organizado graças a você. Sua companhia me fez muito bem, e mesmo com o meu ciúme, acredito ter feito algo de bom para sua vida emocional e profissional. Espero eu que não tenha sido só negativo, caso contrário não teríamos ficado junto por dois anos que seja.

Hoje eu sou um coroa solitário, com pouquíssimos amigos, gasto o meu tempo estudando literatura, no meu projeto de pesquisa, estudando xadrez, aprendendo a tocar violão e jogando videogame. Sim, pode falar que eu nunca vou crescer e você tem razão. Sei o quanto você detestava o fato deu jogar videogame e de alguma forma o violão não te trazia boas lembranças, mas não entremos a esmiuçar feridas em hora indevida.  

Ainda vou imprimir suas teses de mestrado e doutorado e ler. Quando o fizer vou escrever algo sobre. Não que você se importe, não que irá mudar algo na nossa vida, mas aquilo que está morto não pode morrer novamente, esse é o saldo positivo de tudo isso. Ambos morremos há muito tempo e renascemos para o mundo com outros propósitos. Sua morte foi rápida e a minha foi lenta, mas passamos pelo mesmo processo e agora estamos aqui, ressuscitados.

Para finalizar queria dizer que você nunca será uma inimiga, pois mesmo em silêncio você tem sido a melhor de todas. Seu silêncio é a minha lição de vida, quem sabe na próxima eu aprendo. Paciência é a chave. Peço perdão para você, não com o intuito de que você aceite, pois você não pode nem deve aceitar esse pedido. Peço perdão para reconhecer que errei durante muitos anos e não sabia que havia errado.

Como iniciei o texto, a questão aqui é sobre reconhecimento. Foi bom enquanto durou. Tudo acaba, até as estrelas vão explodir um dia. Só que disso vai surgir algo novo. De um defunto renovado para uma defunta distante, fique bem. Seja feliz, permita-se ser feliz. Você não precisa viver na sombra do nosso relacionamento nem se sentir culpada por nada. Se você me traiu ou não, isso não importa. Eu a amo desde o momento em que vi seus olhos do tamanho da lua pela primeira vez e vou continuar te amando até a hora que partir dessa para outra. Se você me traiu, ótimo, eu merecia ser traído. Afinal de contas, você era boa demais para um moleque atrevido como eu era. Fique bem. Lembre-se: “a verdade vos libertará”. Abraços. Shiví be-shalôm Elohím


C. H. Barbosa - E a verdade vos libertará ou um ensaio sobre o ciúme

 

Saturday, 11 October 2025

Fuck!

     It is curious that my obsession with you does not pass. Perhaps it is a deeply wounded pride, the pride of never having accepted the end of our relationship. While you breathe the clear, fresh air of freedom, I have not been able to breathe properly for years. Pride? Perhaps. Even so, I sense a great fear in you. I have said this before, but it bears repeating. Repression can be a powerful form of denial—a cowardly way of refusing to face what we once loved so much. I no longer search for explanations; for a long time I tried, in vain, to analyze your psychology. You are no longer the same person, and neither am I. This is the only poor yet viable explanation I can find: repression. Fear. What other motive could make you so determined not to speak to me under any circumstances? It is as if I had inflicted irreparable harm on your life, as if I had taken a loved one from you, or abused you in some way that would make reconciliation impossible. I feel like one of those outcasts, a criminal who, after serving a long sentence, tries to apologize to the family only to be met with withering contempt.

    What is the explanation? It scarcely matters; I already have it. Human beings are illogical creatures, driven by contradictions, hypocrisies, fears, and passions. It would be useless to look for sense in all this, and I believe that was what drove me mad some years ago. Yes, it was very sad and painful—it still is—but today I have learned to live with the restless shadows that come to torment me from time to time, as at this very moment while I write these lines.

    Ghosts of the past, demons, spirits—call them what you will—something haunts me and will not let me forget you. Is it madness? Weakness on my part? And if I am weak, does that make you strong? If so, you would be the queen of the purest cruelty and coldness. As I wrote in earlier texts, it would have been better never to have met you. Then, perhaps, I might still have a chance of meeting you. After the relationship ended, I became a complete pariah—useless, senseless—a creature brimming with emotion and too immature to accept what others accept so easily, even becoming friends with ex-girlfriends for life. I never managed that with anyone else, by my own choice. In your case, it was you who chose. And however much I try not to hate you, I cannot; the same force that once propelled the love I had for you now drives my hatred. 

    My fuel in life is refusing to accept your silence, and I have lied for years, trying to manipulate you, to persuade you by the crudest and most insincere means of this inescapable fact: I hate you, Karina! What kind of creature can be so cowardly and cold as to the point of morally erasing someone else for so many years and still go on walking, living, loving… what a mad world this is. If you think I am insane, I think you are too—only with a different strain of madness, that’s all. I am psychotic and you are neurotic—no offense intended. Yes, I hate you from the depths of my soul, and that, too, is love; how deranged all this must sound. Why have I not forgotten you? Why have I been unable to love anyone else? You do not care. To hell with everything that belongs to my world and my small, boyish feelings. You are the mistress of reason, the queen of ice castles, the cold wind and the heedless storm, the everlasting contempt—an illusion of all that once was.

I must have erred—yes, made many mistakes—but unforgivable ones? Is immaturity the only excuse you have for our not speaking? Are you afraid I will return to the subject and then tell me it hurts you? Hurts what? Do you even have a heart? I know Aquarius is said to be a cold sign, but this cold? I keep asking myself what I would do in your place, and mind you, I can be quite wretched and frigid when I choose. After—what?—fifteen years? You are a grown woman, and I am an old man with gray hair; what on earth created this barrier between you and me? Are you afraid I might harm you? Even from a distance? Your silence never convinced me; I was the foolish one. But age brings a few benefits, and one of them is knowing right from wrong. What you have done all these years is wrong. There is no rational justification, for we are speaking of emotions. You will surely find one justification—or many—for this situation, and each will serve to keep you inert, immovable, resolute, as if not speaking to me for the rest of this life were your eternal war for honor. For the honor of indulging your narcissistic impulses, perhaps; for your pride—for there is no moral, spiritual, legal, or personal explanation that accounts for it.

If it had been fifteen days, my childishness would be forgiven—and your silence as well. But fifteen years? Fifteen years! My God, that is the whole life of a young adolescent. What have we produced in all this time? Emptiness. Solitude. Doubt. Pride. Hatred. Contempt. These are our children, now grown and entering their rebellious phase. Soon enough they will turn eighteen—still angry, but a little more lucid. I wonder if, twenty years from now, some enlightened spirit will touch you so that you tell me the reason for this silence that has cut me inside like a sharp, poisoned razor all these days. I remember you with tenderness, as an illusion, as someone who died and will not return; that Karina is gone, and I will never see her again. So be it. I accept that—but I will not accept this mortifying silence for a second more.

     Go on as you wish, but I am certain that something in this wounds you. Something troubles you every day, and you will have to live with it if your decision is firm and indelible: either that you are incapable of forgiving, or that you cannot admit you are afraid you might come to like me again and, confused as well, are afraid of suffering as in the past. Yes, I am jealous; I think I am a little better now, but at the time I had no understanding of that feeling. Today I think I understand a thing or two about jealousy, and I promise nothing—only that I have learned something. I have learned that I ought not to love. Why take the risk? To live with the image of a ghost wandering through my mind and spirit, knowing I will never see her again? What sense is there in that? None; life has no logic, just as neither you nor I do. The things we study are full of logic, and that addicted me to searching for meaning in your actions. But I am tired of lies, tired of contempt, tired of going mad alone and suffering. I am human, for heaven’s sake. I have flesh and bone just like you, and one day I will die—just like you. What, exactly, will we take with us? Our pride, certainly, we will not. Enough. I have said more than I should. Sometimes I feel alone, and solitude, though a great friend, does not embrace me, does not kiss me, says nothing. So I speak to myself, because when I seek the opinion of a wiser person, I end up finding myself. You do not care, and before I fall into the sameness of those hideous sertanejo songs, your indifference is killing me de plus en plus. If that makes you happy, continue. The most absurd thing is to think that, for some sadistic reason beyond my understanding, you keep reading this blog—perhaps even shedding tears. But your decision is more “sublime”: why take risks with a madman, a forty-three-year-old smoker? No—better to keep to yourself; it will be better for you and for me. You are a woman of certainty—certain of everything you do. Keep it that way, and to hell with my small feelings.


C. H. Barbosaan author weary of so many lies.