Durante muito tempo
fiquei me questionando, como na última postagem, a respeito do seu silêncio.
Demora algo eterno para que possamos nos dar conta dos próprios erros, antes de
sairmos acusando os outros. É conveniente acusá-la. É complicado para um ego
revirado de emoções conseguir colocar os dois pés no chão. Vou tentar fazê-lo
depois de todo esse tempo.
O reconhecimento é um
dos fatores essenciais para a mudança do sujeito. Por exemplo, o jovem Werther
apenas se deu conta do seu disparate amoroso ao ver um outro rapaz, jovem e
enlouquecido por Carlota. Esse louco de amor era o próprio Werther, ou o futuro
que apareceu para ele sobre o reflexo de outro pessoa, então ele finalmente
reconheceu que o casal Carlota e Alberto eram seus amigos, e que ele não
deveria ter sentimentos apaixonados por ela. A solução de Werther foi pegar
duas pistolas emprestadas com Alberto e cometer suicídio.
O reconhecimento pode
ser um processo duro, mas é um processo de renovação e ressurreição. Também pode
ser fatal, como foi o caso de Werther. Depois de muito tempo e muita leitura,
ainda não havia chegado no ponto nevrálgico do meu próprio inconformismo com a
separação.
Custa muito para mim
reconhecer que no final de tudo, eu acabei matando você. Não daquela morte
física, onde o corpo é extinguido e as dores e sucessos são resguardados para um
plano além da matéria. Não. Uma morte muito pior do que essa. Eu matei aquilo
que havia de inocente, de puro, de angélico, de natural em você, e depois ainda
exigia uma explicação sobre isso, até ontem queria saber os motivos pelos quais
você tem me desprezado por tantos anos. O absurdo da situação é análogo a um
assassino que questiona a vítima, já morta, sobre o motivo dela não falar.
Este reconhecimento
surgiu como parte dos meus estudos. Sendo um ciumento e reconhecendo em mim
mesmo a natureza vil e mesquinha desse sentimento, me dedico a um projeto de
pesquisa onde pretendo analisar a forma enciumada de Bento Santiago a partir do
materialismo histórico e dialético. Como você fez o mesmo curso que eu, sabe
que os estudos literários fazem mais sentidos quando estão à luz de uma
comparação congênere. Pois bem, estou comparando essa forma enciumada de Bento
Santiago com uma outra de um romance da primeira fase machadiana.
E foi justamente no
romance de Machado de Assis, denominado Ressurreição que descobri e pude
reconhecer a sua morte. Félix é a personagem principal da obra, um homem
limitado e incapaz de amar verdadeiramente. Seu ciúme de Lívia é tão intenso
que tudo o incomoda, um silêncio, um gesto, uma palavra, enfim, tudo é motivo
para o ciumento acusar a parceira de algo que sequer passou pela cabeça dela. E
Lívia ama Félix profundamente, ao ponto de mesmo estar sendo ferida por acusações
e desconfianças, ela ainda continua com ele. Como uma doença degenerativa, o
amor de Lívia começa a diminuir, mas mesmo assim ela continua amando Félix.
O clímax da narrativa
se passa com uma carta, escrita por um invejoso de Félix e que assume um papel
de Iago, onde diz que Lívia havia traído e matado seu finado ex-marido. Félix
prefere acreditar na carta do que nela. Na verdade, Félix só queria mais um
pretexto, pois ele tinha ciúme até do fato dela respirar.
Félix estava para casar
com Lívia quando recebe essa carta e acaba abandonando o plano, frustrando
definitivamente a moça. Depois disso, Lívia nunca mais foi a mesma, passou a
viver reclusa, triste, pois ela ainda o amava, mesmo havendo se passado mais de
dez anos, mas Lívia sabia que não poderia sob hipótese alguma ceder a esse
amor, porque junto com este viria o atroz ciúme com seus véus de loucura.
Resumindo, Félix mata
Lívia, ele mata uma pessoa inteligente, meiga, delicada e a coloca numa
reclusão sentimental, em um retiro para proteção do próprio coração. É desse
tipo de morte que até então não havia me dado conta. O mesmo acontece em Dom
Casmurro, pois a personagem principal e narrador não-confiável, tem um
ciúme do tipo doentio por Capitolina, um ciúme voraz que é capaz de devorar
tudo e todos ao redor. Com a diferença que em Ressurreição a morte é do tipo emocional e em Dom Casmurro a morte é corporal. Falemos disso adiante.
Dentro da minha linha
de pesquisa o ciúme não entra como uma questão moral e sim como um assunto do
plano material. Bento Santiago enxerga Capitu como parte das suas propriedades,
uma extensão do seu capital e, portanto, ela deveria se comportar de acordo com
o que a classe social e a condição ditam. Contudo, Capitu é linda, inteligente,
comunicativa, sabe se adaptar às dificuldades de classe, corajosa e tudo isso
causava uma profunda inveja em Bento Santiago.
Não sei se sentia
inveja de você, mas o ciúme, tenho toda certeza. Eu a admirava, pois apesar de
ser muito jovem você era dedicada, já sabia inglês, entendia muito mais de gramática
do que eu e estava com a mente fresca pois acabara de sair do ensino médio.
Sim, eu a admirava e você me admirava ainda mais, mesmo que na época eu fosse
muito mais pedante do que inteligente.
Talvez nem você tenha
parado para pensar nisso. O motivo de não falar comigo é porque você morreu. Um
tipo de morte especial que funciona apenas para mim, que foi o assassino. E o
que eu matei em você? Eu matei uma pessoa que acreditava no amor, na confiança,
na amizade, no carinho, na reciprocidade das emoções e muito mais do que isso, você
era jovem, pura e inocente.
Depois que namoramos
por dois anos e meio (acredito eu), você absorveu parte do meu pessimismo, da
minha perfídia, do meu cinismo. Há algo de mim dentro de você, pois essa
capacidade de resolução, essa decisão de não voltar atrás, parece muito mais comigo
do que com você, antes de ter morrido nas minhas mãos. Eu fui cruel sem saber,
esmaguei a semente de algo que poderia brotar e dar flores magníficas, como um
furacão desvairado, varri aquilo que havia de ingênuo no seu coração.
Se é verdade que há
algo de mim dentro de você, também é verdade que há algo de você dentro de mim,
pois eu também morri, eu acabei me matando, me consumindo nessas chamas ardentes
do ciúme. Ao ponto de mesmo não estando mais contigo, eu ainda sentia ciúme de
ti. Não me acuse de tolo, pois demorou muito anos para que eu tivesse essa
iluminação, que só pode ser obra divina. Por mim mesmo continuaria remoendo
meus sentimentos egoísticos.
Não importa se Capitu
traiu ou não Bento Santiago. O que importa é que sabemos que ele é inseguro,
medroso, covarde e quer nos convencer e convencer a si mesmo da sua ingenuidade.
Palavras que não são minhas, mas de Hellen Caldwell e Roberto Schwarz. Quando
der aulas em escolas, vou realizar o julgamento de Bento Santiago em sala de
aula, pois ainda me lembro de você ter me dito que no seu período escolar vocês
fizeram o julgamento de Capitu (e também o julgamento de Adolf Hitler na aula
de história e, curiosamente, você representou a advogada de defesa do genocida.
Só você mesma para ter essa liberdade de espírito, sendo judia e representando,
no mundo da ficção, a advogada do partido nacional socialista).
O julgamento de Bento
Santiago faz muito mais sentido, pois só temos a versão dele, como até então o
leitor dos meus escritos tem apenas a minha versão. Bento Santiago se coloca ao
mesmo tempo como réu, investigador, advogado e juiz. É uma personagem perigosa
com indícios de sadismo e psicopatia, e é inevitável não reconhecer que eu
tinha muito desse Dom Casmurro dentro de mim.
Apenas divagando um
pouco, a minha hipótese, ancorada nas leituras de Hellen Caldwell sobre o Otelo
brasileiro, é a de que Bento Santiago eliminou Capitu fisicamente, só que da
mesma forma que não podemos ter certeza sobre a traição, não podemos ter
certeza sobre o assassinato. Mas há fortes indícios na obra que uma leitura close-reading,
tanto de Dom Casmurro quanto de Otelo me fizeram perceber.
Machado de Assis era leitor de Edgar Allan Poe e conhecia os métodos do
escritor gótico americano. O bruxo também conhecia Shakespeare e tinha um plano
de desconstruir os ideais românticos da fase literária anterior.
Enfim, dizem que de
tudo fica um pouco. Ficou um pouco da sua sensibilidade em mim e por isso sou
eternamente grato. Aprendi a ser inteligente, disciplinado, organizado graças a
você. Sua companhia me fez muito bem, e mesmo com o meu ciúme, acredito ter
feito algo de bom para sua vida emocional e profissional. Espero eu que não
tenha sido só negativo, caso contrário não teríamos ficado junto por dois anos
que seja.
Hoje eu sou um coroa
solitário, com pouquíssimos amigos, gasto o meu tempo estudando literatura, no
meu projeto de pesquisa, estudando xadrez, aprendendo a tocar violão e jogando videogame.
Sim, pode falar que eu nunca vou crescer e você tem razão. Sei o quanto você
detestava o fato deu jogar videogame e de alguma forma o violão não te trazia
boas lembranças, mas não entremos a esmiuçar feridas em hora indevida.
Ainda vou imprimir suas
teses de mestrado e doutorado e ler. Quando o fizer vou escrever algo sobre.
Não que você se importe, não que irá mudar algo na nossa vida, mas aquilo que
está morto não pode morrer novamente, esse é o saldo positivo de tudo isso.
Ambos morremos há muito tempo e renascemos para o mundo com outros propósitos.
Sua morte foi rápida e a minha foi lenta, mas passamos pelo mesmo processo e
agora estamos aqui, ressuscitados.
Para finalizar queria
dizer que você nunca será uma inimiga, pois mesmo em silêncio você tem sido a
melhor de todas. Seu silêncio é a minha lição de vida, quem sabe na próxima eu
aprendo. Paciência é a chave. Peço perdão para você, não com o intuito de que
você aceite, pois você não pode nem deve aceitar esse pedido. Peço perdão para
reconhecer que errei durante muitos anos e não sabia que havia errado.
Como iniciei o texto, a
questão aqui é sobre reconhecimento. Foi bom enquanto durou. Tudo acaba, até as
estrelas vão explodir um dia. Só que disso vai surgir algo novo. De um defunto
renovado para uma defunta distante, fique bem. Seja feliz, permita-se ser
feliz. Você não precisa viver na sombra do nosso relacionamento nem se sentir
culpada por nada. Se você me traiu ou não, isso não importa. Eu a amo desde o
momento em que vi seus olhos do tamanho da lua pela primeira vez e vou
continuar te amando até a hora que partir dessa para outra. Se você me traiu,
ótimo, eu merecia ser traído. Afinal de contas, você era boa demais para um
moleque atrevido como eu era. Fique bem. Lembre-se: “a verdade vos libertará”. Abraços.
Shiví be-shalôm Elohím
C. H. Barbosa - E a verdade vos libertará ou um ensaio sobre o ciúme
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