Monday 24 July 2017

Camila

Neste exposição continuamos a tratar das personagens da Eneida. Desta feita trataremos de Camila, rainha dos volscos e amazona. Os volscos são um povo latino aliados de Turno na guerra por Lavínia e pelo Lácio. Camila é um tipo de comandante das forças das guerreiras amazonas. Amazona, no sentido etimológico grego significa "sem seio", mazon significa seio e a é a partícula de negação.
O livro XI da Eneida é dedicado a tratar desta espetacular guerreira. Um livro sui generis no tratamento de heroínas na história da literatura clássica. A Ilíada de Homero é um livro militar e patriarcal, no qual pode-se observar grandes feitos de heróis como Diomedes, Aquiles, os dois ajaxes, Hector e tantos outros homens. Dentre as muitas diferenças de estilo e composição, Virgílio destaca-se novamente como um poeta além de Homero ao configurar uma novidade na literatura épica, o tema da mulher como a guerreira bela e boa (kalos kagathos) em busca da bela morte (kalos thanatos).
Metabo e Casmila são os pais de Camila e líderes das gentes dos volscos. Ainda quando Camila era infante Metabo torna-se um líder odiado por seus vassalos, cujas tramas e conspirações para retirar Metabo do poder acabam por fazer o pai e a criança terem de fugir das tentativas de assassinato.
Apertando a criança contra o peito  o pai carrega Camila no colo, no rumo das cordilheiras e dos bosques desertos, ambos sendo perseguidos pelos vassalos de Metabo.
Não obstante a fuga, Metabo encontra uma dificuldade extrema em sua escapada, um problema exposto pelas próprias condições da natureza. O rio Amaseno lhe corta e impede o caminho, pois o rio está cheio de espuma terrosa cobrindo suas ribeiras por causa das recentes chuvas. Poder-se-ia cruzar o rio a nado, caso não estivesse com a pequena criança no colo.
Metabo então pondera uma série de planos para salvar sua filhinha, enquanto os volscos vem no encalço para tirar-lhe a vida. O pai desesperado acorre a uma estratégia bela e ousada. Amarra a criança na base de sua lança junto com pedaços de madeira que havia encontrado por ali mesmo, deixou a pequena Camila muito bem protegida e, girando-a para o alto faz uma prece para a deusa caçadora Diana.
Antes de arremessar a lança com a criança para a outra margem do rio Amaseno, Metabo pede para a virgem nascida da augusta Latona, Diana, para amparar a vida da criança neste momento de instabilidade. Vendo a turba de inimigos aproximar-se, Metabo atira a lança para a outra margem do rio, tendo sucesso na sua empreitada, o pai nada até a outra margem do rio e consegue salvar Camila, devotada à deusa Diana.
Teto nenhum abrigou o pai com a criança, nem cidade com fortes muralhas, e Metabo não queria rebaixar-se a outrem em troca de abrigo. Portanto Metabo passou a viver como pastor solitário nos montes agrestes. Cria a sua filha em cavernas hórridas, matagais inospitaleiros, alimentando-a com leite de égua.
Mal começou Camila a firmar os pezinhos no solo, Metabo a equipa com um dardo pontudo e pelos ombros passa arco e aljava. Desde pequena Camila aprendeu a manejar armas de guerra e adquire grande habilidade caçando animais silvestres, aves como o cisne e o grou. Muitas matronas tirrenas esforçavam-se em vão para ter Camila como consorte dos filhos, mas ela já estava contente por pertencer a Diana e o culto da virgindade sem manchas.
Camila cresce sem o amparo maternal. Sem um lar. Susceptível às vicissitudes da natureza inexpugnável. Ela enfrenta um certo nível de dificuldades sociais e as supera. O mundo de Camila, como podemos observar até este capítulo, é um mundo bélico masculino. Camila é decisiva como demonstração de poder feminino na sociedade romana. A morte gloriosa já não é privilégio de guerreiros como Eneias, Turno, Palante ou Mezêncio.
Diana Trívia é a deusa protetora de Camila. Diana acolheu as preces de Metabo e a partir daquele momento passou a amar a pequena guerreira amazona. Tanto era essa afeição da deusa pela mortal que Diana manda a ninfa Ópis exterminar qualquer guerreiro, latino ou troiano, que porventura venha a tirar a vida de Camila.
Como já foi muito bem trabalhado na Ilíada, o tema da aristeia também retorna na obra de Virgílio. Na Ilíada temos os grandes feitos de Diomedes ao entrar no campo de batalha possuído pela deusa Atena e conseguir ferir os deuses Ares e Afrodite, além de causar uma matança sem precedentes nas forças troianas. Ainda na Ilíada há os grandes feitos de Agamemnon e Aquiles, sendo este último absurdamente espetacular. Durante a aristeia de Aquiles, o guerreiro solta um grito no campo de batalha que acaba por matar vários guerreiros troianos.
A aristeia ou os grandes feitos de Camila é o ponto culminante da literatura clássica. Pode ser que isso tenha existido antes de Virgílio mas este poeta latino foi quem deu corpo e alma para este tipo de composição. As Amazonas lideradas por Camila são guerreiras trácias filhas de Marte. Detestavam os homens, e, diz o mito, amputavam um dos seios para melhor manejar o arco.
Camila está no campo de batalha num momento supremo da guerra entre latinos e troianos. A protegida de Diana está ao lado das suas fiéis companheiras, Larina virgem, mais Tula e Tarpeia, firmes como machados de bronze. As armas delas estavam pintadas e desenhadas para distrair e até assustar os inimigos.
O primeiro a cair nesta cena da aristeia de Camila é Euneu, nascido de Clício, que à frente da amazona passara. Camila penetra a lança no peito de Euneu fazendo-o cair no chão vomitando sangue, e na ansiedade extrema da morte iminente, Euneu morde a terra sangrenta, tentando estancar a ferida no peito.
Então Camila golpeia Págaso e Líris, enquanto um deles tentava agarrar as rédeas do cavalo, e o outro tentava amparar o primeiro. Ambos rodam sem vida na areia. Prosseguindo a carnificina Camila atira-se contra Amastro filho de Hipotes, e ao longe, derruba com sua lança a Demofoonte e Tereu, seguidos por Harpálico e o valente Crômis.
Órnito é a próxima vítima de Camila. Um caçador com vestimenta fantástica, ombros largos cobertos com a pele de um touro; a cabeça de um lobo com os dentes arreganhados lhe serve de elmo. Uma lança potente na mão direita. Camila derruba Órnito muito facilmente e ainda lhe diz:

"Siluis te, Tyrrhene, feras agitare putasti?
Aduenit qui uestra dies miliebribus armis
uerba redarguerit. Nomen tamen haud leue patrum
manibus hoc referes, telo cecidisse Camillae".

(Eneida, Livro XI, versos 686-689)

Traduzindo livremente, o que Camila disse para Órnito derrubado no chão: "Imaginava estar à caça de feras tirreno? Pois chegou o dia em que tua arrogância recebe a resposta das minhas mãos. Todavia não morrerá sem glória; Quando chegar ao inferno diga que sua morte veio das mãos de Camila".
Depois Camila vai ao encontro de Orsíloco e Butes, dois agigantados e fortes troianos. Camila enterra sua lança por baixo do elmo de Butes. Quanto a Orsíloco a guerreira amazona finge fugir até encontrar o momento ideal para enterrar o machado na cabeça do troiano.
Órnito retorna, pois ainda não havia sido morto naquele momento e desafia Camila. Órnito tenta um ardil ao dizer que Camila não sabe lutar sem um cavalo e pede para ela descer do animal e enfrentá-lo a pé. Camila entrega o cavalo para uma companheira e se adianta para a luta, com a espada na mão e o escudo limpo. Certo do efeito de sua ardileza, Órnito tenta escapar e Camila o chama de "pérfido lígure". Camila então corre como um raio até o cavalo de Órnito, o pegou pelas rédeas e sangra o inimigo ali mesmo.
A aristeia de Camila termina por aqui pois a guerreira trácia comete uma imprudência. Cloreu, sacerdote de Cibele estava a vagar pelo campo de batalha, com suas vistosas armas de bronze e ouro entremeado e à cavalo, um arco de ouro trazido da Lícia e um escudo requintado. A bela virgem, talvez por querer pendurar na entrada do templo as armas troianas de Cloreu, ou mesmo em suas caçadas usar dessas armas excelentes do adversário, em desejo ardia para apoderar-se destas armas.
Contudo, Arrunte estava emboscando Camila já fazia algum tempo. Onde quer que Camila fosse Arrunte a seguia com seu cavalo, esperando obter uma vitória gloriosa e fácil. Arrunte então faz uma prece para Apolo, pedindo para o deus não os espólios da virgem guerreira mas a fama merecida por ter abatido uma adversária venturosa. Apolo concedeu à prece de Arrunte e deixou que prostrasse sem vida a Camila imprudente.
Arrunte lança um dardo certeiro para atingir a rainha dos volscos e Camila nada suspeita, nem ouve no ar o estridor ou a farpa zunir no seu curso. O dardo chega a encravar-se no peito direito e embeber-se inteiramente no sangue inocente da virgem. Trêmulas, as companheiras de Camila a sustentam, sem vida.
Tal como um lobo, antes mesmo de ser perseguido por dardos, Arrunte corre e esconde-se nas brenhas por sendas e vias transversas, como se fosse um lobo e tivesse matado um pastor por traição ou a um touro soberbo, consciente da audácia do seu próprio feito, corre com a cauda entre as pernas colada ao ventre, na selva procura esconder-se de medo.
Já moribunda, Camila ainda tenta arrancar a longa lança, porém a ponta de ferro fixara-se profundamente nos ossos. Com a grande perda de sangue, Camila enlanguesce, seus olhos se fecham com o letal frio. Das faces o belo rosado apaga-se. Manda então chamar uma de suas companheiras, Aca, e lhe comunica as palavras finais:
"Até aqui me foi possível lutar mas esta ferida cruel me mata. Por todos os lados só vejo as trevas adensarem-se. Diga a Turno as últimas palavras do campo de luta. Que Turno assuma o comando dos muros e afaste o inimigo. E agora, adeus". Ao dizer isso, a rainha virgem solta as rédeas e ao solo desliza sem resistência. Aos poucos a vida dos membros lhe escoa. Com o próprio peso da morte a cabeça dobrou para o lado, lânguida e inerte. Dos braços sem força, as armas lhe escapam. Foge-lhe a vida, indignada, acolhendo-se ao reino das sombras.
Neste instante a ninfa Ópis, emissária de Diana Trívia, estava sentada num alto monte a observar sem paixão os aspectos da luta. Quando Ópis ouve os gritos e o pranto das jovens guerreiras que fora presa da morte odiosa a forte Camila, profundo geme no peito e tais palavras emite:
"Ai! Você pagou muito caro donzela animosa, a ousadia de bater-se contra os Fados, de bater-se contra os fortes troianos. Não te valeu viver no deserto para o culto de Diana, nem como nós trazer no ombro uma aljava com as flechas sagradas. Tua rainha, porém, não te esquece nesse último transe, nem ficará tua morte esquecida entre as gentes futuras e não ficarás com a fama de não teres sido vingada.
Diana já havia dito "Quem quer que tiver a ousadia de violar o corpo sagrado de Camila o castigo merecido há de ter". Bem na falda de um monte foi para onde a ninfa voou para encontrar Arrunte. Ao avistar Arrunte, Ópis o intima: "Para onde vai correndo assim? Vire seus passos para cá. O assassino de Camila já vai receber o seu prêmio". A ninfa trácia falou e da aljava dourada tirando uma flecha ligeiramente, o belo arco afastou e, encurvando-o, repuxa com a força máxima a corda até unirem-se as pontas no centro, vindo ela então a tocar com a mão esquerda a base da ponteira na extremidade da seta, e com a mão direita encostada no peito aprontar o disparo.
A um só tempo Arrunte ouve o som do ar, o sibilo da seta e o próprio ferro encravar-se-lhe nas entranhas adentro. Ei-lo a estorcer-se nas vascas da morte, estendido na poeira desconhecida do campo. Os companheiros esqueceram dele. Ópis com suas asas ligeiras volta para o Olimpo sereno:

"Cur", inquit, "diuersus abis? Huc dirige gressum,
huc periture ueni, capias ut digna Camillae
praemia. Tune etiam telis moriere Dianae". 
Dixit et aurate uolucrem Threissa sagittam
deprompsit pharetra cornuque infensa tetendit
et duxit longe, donec curuata coirent
inter se capita et manibus iam tangeret aequis, 
laeua aciem ferri, dextra neruoque papillam.
Extemplo teli stridorem aurasque sonantes
audiit una Arruns haesitque in corpore ferrum. 
Illum exspirantem socii atque extrema gementem
obliti ignoto camporum in puluere linquunt,
Opis ad aetherium pennis aufertur Olympum.

(Eneida, Livro XI, versos 855-867)


Carlos H. Barbosa - A arte da guerra ou Camila 









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