Sunday 27 August 2017

O Cartaz

Ao passar na rua vê-se um poste com um cartaz impresso em folha de papel cartão: como reconquistar a pessoa amada. Jogo búzios. Afasto rival. E um número de telefone e serviço de mensagens. As buzinas da estrada são quase miúdas, imperceptíveis.
Um jogo de talheres prateados em oferta na vitrine de uma loja. O semáforo fecha. Não há nenhuma nuvem, apenas o sol ilumina e aquece. Uma gota de suor escorre no rosto de um transeunte. As ruas repetem e imitam umas as outras. Prédios de seis e três andares.
O sorvete torna-se o maior desejo perverso do momento. E o açaí. O din din. O sacolé. O geladinho. Água. As pessoas precisam tomar muita água. Falar sobre chuva é um tabu. Uma piada de mal gosto. Sem previsão de chuvisqueiro qualquer. O tempo passa.
É um deserto civilizado. Organizado em quadras e blocos, classificado em números e letras. Isso é público. Aquilo é privado. Este é o meu sangue. Essa é a nossa história. Um lindo ipê resplandece com suas fracções amarelantes.
É um novo dia, uma nova possibilidade, um novo sonho. Em cinco anos melhorar a perspectiva econômica. Passar em um concurso público, comprar um casa, casar, casualmente graduar-se, colar grau. Com cinco anos disponíveis construímos estradas, modelamos uma maquete daquilo que poderia ser perfeito.
Não há água. Encontraremos a solução para este problema, nem que tenhamos que cavar e criar um lago artificial. Qualquer dia as ruas vão se desprender do solo e elevar-se até os céus. Como reconquistar a pessoa amada. Faço massagem, Fulana de tal. Os cidadãos importaram as transações burocráticas para seu seio. O procedimento. O processo. Uma forma técnica e segura de controlar o caos rotineiro.
Escovar os dentes. Tomar café. Nadar. Ler pilhas de textos, escrever pilhas de textos. Seguir dogmaticamente todas as etapas do procedimento. Do processo. Uma ligação que espera ser atendida. Um alerta vermelho indicando que há uma nova mensagem de texto. O tempo não passa.
Lojas de colchões umas ao lado das outras. O semáforo amarela. Durante o dia o comércio abre as portas. Á noite algumas delas abrem as pernas. Pagar as contas é preciso. Sustentar a filha de três anos. Comprar o celular mais caro do mercado. Passear de iate. Comprar joias europeias.
Ter certeza do futuro e ser grato e abençoado numa vida de sucesso. Obrigado pai. Você fez de mim uma pessoa. Não há praia por aqui. Apenas o deserto. Um avião há mais de mil metros de altura. Fazemos o check-in e nem sinal de piloto. Decolar. Um pouco de ansiedade bate no peito. Uma criança chora no colo da mãe. Devo partir ou deveria partir-me?
Centenas de viaturas e patrulhas. Ninguém é preso de verdade. Atrás da cortina do teatro homens em ternos finos apertam mãos, sorriem e tapinhas nas costas. Uma maleta repleta de dólares é encontrada no Lago Norte. Milhares de policiais procedem de acordo com a lei mas nenhum bandido é preso.
Os professores ensinam e os alunos não aprendem. Depois da escola não vai ter trabalho. Fazer faculdade, fazer família, fazer farra, fazer festa, fazer-fazer e depois não fazer mais nada. Moradores de rua procuram algo no chão. Parece que eles nunca vão encontrar.
Os poetas estão todos mortos ou presos. Facínoras da linguagem. Terroristas verbais. No princípio era o verbo. Depois passamos a acreditar nessas coisas, aos pouquinhos. Temos muita fé. Ah! Se eu pudesse, pintaria o museu de preto. Dançaria samba sob o teto do Congresso Nacional. Atearia fogo no Palácio do Itamaraty. Juraria pela alma da minha mãe amar, ser fiel, patriota, monogâmico, religioso sem ser fanático, trabalhador, e morreria com dignidade: devaneios de um cidadão frustrado.
Como reconquistar a pessoa amada. Um shortinho e um olhar notívago na Asa Norte -oi amor vamos namorar?- Um menino negro vem me perguntar se quero isso ou aquilo. O desejo de ser menos hipócrita. A sujeira escorre do Palácio do Planalto, lava a Esplanada dos Ministérios e escorre para o leste e para o oeste.
Temos de orar para melhorar a vida dos outros. Só que nada disso acontece. Fazer parte de uma história que já sabemos o final. Somos personagens dela, mas por alguma incongruência sintática, estamos inaptos a agir. Um sonho intenso. Um raio vivido. Desfaz-se no ar. Desintegra-se. Corrompe-se e desaparece.
Uma loja de ideias. Na vitrine livros, teses e diplomas. O tempo passou. Agora somos mais sérios. As brincadeiras do colégio servem como uma porcelana de alta qualidade na memória. Setor de Hotéis. Setor Hospitalar. Setor de Becos. Setor de Bocas. Setor de Bundas. Setor de Solidão. O que é vulgar tornou-se banal. O fútil sagrado. O bem-estar numa pilastra. Os ipês brancos como neve. Não sabemos se a neve é branca. Se a cachaça no boteco ao lado é transparente. Se o álcool pode trazer algum conforto e alegria para uma alma devastada.
Um jogo de futebol ao vivo no aparelho ligado na loja em frente. O semáforo fica verde. Mas ainda não podemos passar. Temos de esperar com resignação. Paciência, muitos quilos de paciência. O azul de um céu desanuviado versus o cinza do cotidiano. O pai de família beija a esposa mecanicamente antes de ir para o trabalho. A van já levou os pequenos para a escola. Estes vão crescer e fazer universidade pública. Doutores, juízes, médicos, advogados e psicanalistas.
Um artista tenta sobreviver com suas manobras antes que o sinal fique verde. Corrupção e tédio são as cores favoritas que pavimentam o âmago inescrutável da cidade. Como falar a verdade sem ser indelicado. Educar os filhos com responsabilidade. Amar.
Não, não há uma flor brotando no asfalto. E as rosas esquecem os próprios espinhos. Regar as plantas e alimentá-las com restos de alimentos. O tempo passado. Aos domingos almoçar na casa da sogra, jogar conversa fora, dar risada. A sobremesa é a parte mais gostosa. Planos para o futuro. Socialmente educados. Formalmente domesticados.
Acabou o espaço para guardar sapatos no armário. Um taxista pega o telefone e tira uma foto de um anúncio: como reconquistar a pessoa amada. Em uma outra parte da cidade, próxima ao frescor do lago, no banquinho de concreto, perto de um ipê de folhas brancas, está um par de seres prestes a reinventar todas as dimensões e galáxias. Há uma massa magenta magnífica, uma aura de sinceridade, respeito e desejo.
Ele segura a mão dela. Ela olha para ele com aqueles olhos castanhos cor de mel, o cabelo preto e longo amarrado. Ela usa uma chinela simples, um short jeans e uma regata branca. Um brinco prata metálica em formato de quarto crescente da lua. Um relógio desses mais baratos e vagabundos. Nesta noite amena uma boca encontrou outra boca. E o que era para ser apenas um beijo foi uma revolução estelar. Uma explosão cósmica. O tempo parou.
As folhas brancas do ipê, o concreto do banquinho, o lago orvalhado, do outro lado inverso da cidade, o semáforo quebra. O universo é capaz de produzir momentos belamente curtos. Coragem. Um homem feito de ferro/à prova de balas ainda não é imune a ataques de paixão. Olhos de cigana obliqua e dissimulada. É muito cedo para tirar conclusões. O objeto do seu estudo tem de estar bem definido. Então aplique o método. Processo. Procedimento.
Uma fila de desempregados com currículos nas mãos. O semáforo volta a ficar vermelho. Alguns são abençoados por Deus. Outros são idiotas. Aqueles tem futuro. Estes não. Passatempo. Ler livros no ponto de ônibus. Biblioteca no meio da rua. Há alguns cartazes pendurados no ponto: Faço TCC. Revisão de monografia. Curso de Esperanto. Como reconquistar a pessoa amada. Tarô. Quiromancia.
No sonho de uma criança um gato corre pela neve. Num jardim verde há flores satúrnias: amor-perfeito, escovinha, rosa colombiana. Outro cartaz pregado na beirada de um prédio: garoto de programa. Gostoso, bonito e discreto. Whatz: 55-61-98160-8312. Só atendo mulheres solteiras. Rick.
Antes dele falar o maravilhosamente óbvio ela responde: -Eu sei- E um sorriso mútuo perfuma o ambiente.
Uma arara-canindé pousa no galho de um ipê vermelho. Lavar as roupas nos dias certos. Arrumar o apartamento. Pagar as contas de água e luz. Guardar dinheiro para viajar nas férias. Pentear o cabelo. Passar perfume. Processo. Procedimento. Método. De repente ela fica fria como o inverno e com uma mente clara como a neve branca. Há um inverno profundo e esperamos ansiosamente a primavera. Uma piada é a melhor maneira de sair de uma situação difícil.
Não existe amor na escravidão. O semáforo fica dourado. Entender um ao outro mesmo a distância. O medo. A dúvida. A liberdade e a fé superam todas as barreiras. Rosa colombiana não é uma flor satúrnia, ela o corrige. Ela sempre tem razão. Ele é um burro e ainda não sabe disso. Como reconquistar a pessoa amada. O tempo passará. O semáforo ficará marrom. Depois azul. Laranja. Bate um vento forte e o cartaz desprende-se do poste e para no meio da avenida. Um ônibus passa por cima. Depois um carro de passeio. A dona de casa compra os talheres da promoção. O sorvete congela o cérebro. Um grande copo d'água. Um residente das ruas deita em um colchão à amostra e é expulso de lá. Os passageiros aguardam o avião decolar. O pranto da criança é interrompido pelo seio reconfortante da mãe.  Uma jovem começa a pintar o Museu Nacional com uma brocha e um balde de tinta preta. Como reconquistar a pessoa amada. O artista termina a performance mas não recebe nada por isso. O gato que estava correndo no sonho da criança para de correr pois a criança acordara. O taxista passa de novo pelo lugar e o cartaz não está mais lá. Está no chão. Então o taxista pega a folha de papel cartão enquanto o semáforo está vermelho: como reconquistar a pessoa amada. Não vai chover nem tão cedo.

C. H. Barbosa - O Cartaz

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