Monday 28 February 2022

Clitemnestra

 Prefácio

Notamos na mitologia antiga que uma esposa, quando alienada da condição de uma própria filha comete homicídio doloso contra o marido. Agamemnon, rei de Micenas, tinha ambição de tomar o império do rei Príamo, do outro lado do Mar Egeu.

Agamemnon consultou o oráculo que lhe informou a respeito da guerra e do sacrifico de sua filha Ifigênia para obter o resultado esperado. Ao retornar de Ilíon, Agamemnon é assassinado por sua esposa. Em legítima defesa.

Porque se o marido conseguiu ser frio o suficiente para sacrificar a própria filha em favor de uma atitude egoística de tomada de território, sem o consentimento da mãe, Clitemnestra jamais poderia se sentir segura ao lado de Agamemnon, sabendo que nesta relação o marido conjura mais poderes e influências do que a esposa e poderia usar contra ela. Apesar de Agamemnon ter atacado Clitemnestra indiretamente (assassinou a própria filha em um ritual macabro para o deus da Guerra), o rei de Micenas atacou o coração materno na parte onde mais poderia doer retirando Ifigênia do seio da mãe e deixando a mãe às migalhas emocionais ao ter que sobreviver.

A questão sobre o valor da vida humana é inquestionável. E a pergunta que o direito sempre deve refletir sobre é se Elize Matsunaga cometeu um crime, e não se ela é culpada ou inocente. Culpados todos nós somos, e isso não presume responsabilidade criminal.

Não há dúvidas que o homicídio é um crime hediondo. Entretanto, quais as circuntâncias que levaram a este homicídio é o que deve ser caracterizado como forma processual.

A substância do processo criminal deve conter a verdade histórica e humana inseridas de modo que possamos qualificar Elize Matsunaga dentro do código penal e estipular uma sentença adequada ao caso e que não privasse a mãe do contato com a filha.

E devemos refletir sobre a alteridade, sobre a vida do outro. Em outras circunstâncias o júri teria agido da mesma forma? Se Marcos Kitano Matsunaga assassinasse Elize Matsunaga dentro de sua residência, ele teria pego uma pena tão grande?

Marcos Kitano Matsunaga é um homem rico, privilegiado em contrapartida em uma relação onde sua esposa não usufrui do mesmo poder financeiro e privilégios do marido. A senhora Matsunaga sofreu ameaça de internação em clínica para tratamento psiquiátrico, e conseqüente alienação da própria filha.

Se você fosse uma mãe, como você reagiria no lugar da senhora Matsunaga? Sabendo que o marido pode matá-la, ou aliená-la da sociedade a qualquer instante pelo pressuposto do privilégio social do homem rico em detrimento do homem pobre?

Sabemos que no Brasil existe uma constituição para a elite e outra constituição para as classes menos favorecidas socialmente. E é isto que vamos analisar.

Introdução

Sim, uma minissérie bem popular na Netflix (Once upon a crime, 2021 https://www.netflix.com/title/81043160). A história da mulher que assassina o marido. Não obstante, esta é uma história real. Vamos observar os fatos com um pouco de senso crítico e descobrir ipso facto se a nossa personagem, a senhora Elize Matsunaga é uma heroína ou uma vilã.

O objetivo é tratar desta personagem histórica do cotidiano brasileiro que representa muitas mulheres em condição de opressão familiar e que não podem reagir porque o marido usufrui de poderes no limite do Estado de Exceção. Elize Matsunaga era casada e em situação de desvantagem sócio-econômica frente a seu marido Marcos Kitano Matsunaga.

Mésalliance

A Senhora Elize Matsunaga e o Senhor Marcos Matsunaga se conheceram no ano de 2004, por meio de um site de relacionamentos. A vida do casal era harmoniosa até meados do ano de 2010, quando Elize desconfiou que estivesse sendo traída — porém, a gravidez dela, no mesmo ano, fez com que a desconfiança fosse momentaneamente deixada de lado.

Com o passar do tempo, o casal começa a brigar frequentemente, conforme as suspeitas de Elize aumentam. Preocupada em estar sendo traída, a senhora Matsunaga viaja para o Paraná e contrata um detetive particular para espionar o marido. Rapidamente, ela descobre que Marcos jantou com uma amante em um restaurante luxuoso em São Paulo e passou a noite com ela no hotel Mercure, na Vila Olímpia. (https://www.google.com/travel/hotels/s/mEKcZ) Ao descobrir sobre o encontro, ela volta para casa em 19 de maio de 2012, no dia em que ela cometeria o crime em legitima defesa.

A senhora Matsunaga tinha toda evidência material necessária para incriminar o marido, fotos e vídeos oriundos do detetive particular contratado por ela.

De volta a São Paulo, Elize, a filha do casal — que tinha um ano na época — e a babá da criança foram buscadas no aeroporto. Ao chegar a casa, a profissional foi dispensada e o casal iniciou uma briga quando Elize questionou Marcos sobre a traição, afirmando que não aceitaria esse tipo de comportamento.

Esse erro tático prova que a senhora Matsunaga não premeditou o crime. Se a intenção dela fosse a de extorquir o marido, ela poderia ter tentado isso de diversas outras formas. Lembrando que não é só isso, a senhora Matsunaga é formada em Enfermagem e em Direito.

O que aconteceu durante essa discussão do casal poderia mudar completamente a decisão do júri. E da população brasileira. Elize Matsunaga acreditou ter alguma vantagem por possuir evidência material contra o marido.

Contudo, o senhor Marcos Kitano Matsunaga era uma pessoa provida de poderes divinos no âmbito financeiro. Quando a esposa o ameaçou com as evidências contra ele, de que não haveria mais como ele esconder a infidelidade conjugal, Marcos Kitano Matsunaga apelou para seus poderes olímpicos.

Com a abordagem da esposa, o empresário se enfureceu, a insultou e lhe deu um tapa no rosto (Foto 4/38 Laudo do Instituto de Criminalística http://glo.bo/PD8LuS). Além das repetidas injúrias verbais e físicas, ele ironiza o passado da senhora Matsunaga. Marcos Matsunaga ameaça tirar a guarda da filha e desaparecer com a criança. Além disso, Marcos Matsunaga estava planejando, juntamente com o padre que realizara o casamento, a internação compulsória da senhora Matsunaga em uma instituição de apoio psicossocial privada.  Enquanto o homem proferia tais palavras, ela notou que ele estava perto de uma arma de fogo — já que ambos tinham posse liberada — e, temendo que Marcos a usasse, ela pegou outra e apontou para ele. Segundo o seu depoimento à polícia, a intenção inicial dela era apenas intimidar o marido.

 Apesar de Elize estar armada, Marcos não se conteve e continuou com as ofensas. A mulher, então, fez um disparo que atingiu a cabeça do marido, que morreu na mesma hora (Foto 13/38 Laudo do Instituto de Criminalística http://glo.bo/PD8LuS).

"Judicium"

Processo: C.569/12 - 5ª Vara do Júri da Capital

[(...) nesta cidade (São Paulo) e comarca, teria, com ânimo homicida, matado o seu marido MARCOS KITANO MATSUNAGA, fazendo-o por motivo torpe, mediante recurso que impossibilitou a defesa do ofendido e com meio cruel, bem como teria, também, destruído e ocultado o respectivo cadáver.

Quanto ao crime doloso contra a vida.

Em que pese o comportamento da vítima (envolvendo traição conjugal) e os autos darem conta de que Elize é boa mãe, sendo também polida no trato com as pessoas em geral, a acusada veio a trocar o cano da pistola com a qual atirara em Marcos, bem como a livrar-se do computador com o qual, passando-se falsamente pelo ofendido, enviou mensagens a outrem, informando que ele estava bem (portanto vivo), assim posando de esposa abandonada pelo marido que teria deixado o lar conjugal, tendo - ainda - se desvencilhado do instrumento com o qual esquartejou o corpo da vítima, também espalhando suas partes em local distante do lugar do cometimento ilícito, cuja prática culminou por confessar (apresentando, no entanto, a sua versão defensiva) tão só dias depois do episódio criminoso, quando as investigações já convergiam contra ela, cuja dinâmica, na esteira do "veredictum" do Conselho de Sentença, aponta cuidar-se de prática revestida de cuidadosa premeditação, reveladora de uma personalidade fria e manipuladora e, portanto, extremamente perigosa.

COMENTÁRIO: (Elize Matsunaga deveria ser orientada apenas por oficiais femininas. Deveria ser uma delegada, especializada em assuntos da mulher que estaria à frente das investigações. Deveria ser uma juíza. E o Estado deveria apresentar uma promotora na frente da acusação.

A senhora Matsunaga nunca foi uma pessoa fria e manipuladora e o crime que ela cometeu não tem qualquer indício de premeditação. Ela sabia que se matasse o esposo estaria em condição muito ruim perante à sociedade.

As atitudes tomadas pela senhora Matsunaga são indício de desespero, uma pessoa que não sabe o que fazer, porque não premeditou o assassinato, resolve simplesmente se livrar da evidência, porque nesta hora Elize Matsunaga estava dominada por adrenalina e medo correndo dentro de suas veias, e foi o medo quem tomou a decisão de ocultar o cadáver.)

 

Aliás, também é dos autos que Elize não é pessoa de parcos recursos intelectuais. Contrariamente, apesar da origem humilde, além de ter frequentado curso de enfermagem (completando-o), formou-se em curso superior em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito), vivendo, ainda, nababescamente depois de casada justamente com o ofendido, já que, no dizer dos autos, então, tratada "como uma Princesa".

COMENTÁRIO: (Quer dizer, que por ser uma moça formada ela jamais poderia ter matado o esposo. Que o fato dela possuir dupla graduação intensifica, aos olhos da sociedade, a frieza dessa mãe desesperada que infelizmente não teve a frieza necessária para tentar convencer o marido a não interná-la e não deixá-la longe da criança.

Apesar de origem “humilde” ela passou a viver “nababescamente” depois de casada, como uma Princesa. Esse tipo de comentário serve apenas para representar o ódio do júri e do próprio Juiz que teoricamente escreveu este texto.

Ou seja, Elize Matsunaga era uma mulher pobre que passou a ter uma vida de princesa, com muita opulência. Contudo, a senhora Matsunaga nunca teve uma situação de isonomia com o marido, e vivia sob constantes ameaças contra a dignidade, contra o corpo, contra a vida.

Portanto, aos olhos da sociedade, a senhora Matsunaga é uma ingrata, por ser pobre e depois ter tanto luxo e matar a pessoa que lhe deu tudo isso. 

Devemos sempre refletir e nos perguntar: o que teria acontecido na recíproca? E se Marcos Kitano Matsunaga tivesse assassinado a esposa dentro de casa? Qual seria a longitude de sua pena?)

Efetivamente, muito embora tenha sido casada com pessoa financeiramente abastada, o foi em regime parcial de bens, encontrando-se em ininterrupta prisão desde junho de 2012, ou seja, há mais de 4 (quatro) anos. (sem direito a habeas corpus).

Mas não é só.

Não se trata de situação onde, logo após a prática homicida, a acusada prontamente se apresentou à polícia para noticiar o ocorrido, esclarecer as suas circunstâncias e declinar onde se encontrava o corpo da vítima, assim efetivamente colaborando com a Justiça.

Contrariamente, é dos autos que a acusada forjou a verdade sobre o acontecido, alegando um desaparecimento do ofendido que sabia inexistente, vindo a confessar a autoria delitiva tão só posteriormente às investigações policiais levadas a efeito.

Bem a propósito, também é dos autos que a ré com veículo tentou distanciar-se desta capital (onde residia) levando consigo as malas contendo o corpo do marido já esquartejado, mas também com documento do carro vencido, acabou desistindo de ir para outro Estado (Paraná).

Nesse conjunto, nem mesmo a primariedade, bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita podem na espécie amparar qualquer outra medida cautelar que não o encarceramento.

Sentença publicada no Plenário 10 do Complexo Judiciário Ministro Mário Guimarães, às 2h8min do dia 5 de dezembro de 2016.

 

ADILSON PAUKOSKI SIMONI

-Juiz Presidente- ]

 

Fotos do laudo do instituto de criminalística na ordem em que constam no documento:

http://glo.bo/PD8LuS

Foto 4/38 Laudo da reconstituição: "Elize retruca posição de Marcos e acaba sendo agredida fisicamente, levando um tapa em sua face", conforme descrição do laudo

Foto 8/38 Laudo da reconstituição: Elize "vai até uma cômoda após o balcão, onde era guardada uma pistola. Elize disse que era de hábito haver armas guardadas pelo interior do imóvel por medo de assaltos"; conforme laudo da reconstituição.

Foto 9/38 Laudo da reconstituição: "Elize pega a arma no interior da gaveta e retorna com a arma em punho", conforme laudo da reconstituição.

Foto 11/38 Laudo da reconstituição: "Elize se vira e vê Marcos vindo da sala de jantar; Marcos vem da sala e vê Elize parada na porta da copa com a arma na mão;", conforme texto do laudo.(foto do corredor, ressaltar pequena distância entre Elize e Marcos)

Foto 13/38 Laudo da reconstituição: "Marcos se desloca em direção a Elize, esbravejando e dizendo que ela não teria coragem de disparar. Elize realiza um disparo de arma de fogo contra Marcos, sem fazer visada", conforme relato no laudo. (Marcos chega muito próximo a ela)

Foto 14/38 Laudo da reconstituição: "Marcos tomba em decúbito dorsal em meio ao corredor, de fronte a porta de entrada; Elize sai da copa, passa pela cozinha e se desloca em direção a sala de jantar", conforme o laudo.


Carlos Henrique Barbosa: Legítima Defesa

 

 

 

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