Wednesday, 11 February 2015

Medium

Durante muito tempo eu fui como Paulo, o evangelista. Cético, cínico, falso poeta e filosofo. Deus e o mundo espiritual não passavam de uma piada de mau gosto. 
Nem sempre foi assim. Já fui cristão pelas aparências e até seguia alguns princípios da doutrina espírita. Até eu conhecer uma pessoa que mudou tudo isso. Por uma questão de respeito e consideração, não vou citar nenhum evento ou situacão que possa remeter a este espírito (encarnado) que contribuiu para deixar-me cético, confuso e mais tarde doente da alma.
Como todo espírito evoluído moralmente eu sofri como uma criança abandonada na lata de lixo, sofri como o viciado na sarjeta bebendo cachaça. Parei de acreditar em tudo o que era bom e justo, passei a amaldiçoar Deus e sua criação, doente mental, insano, árvore seca e infrutífera que em seu desespero egoísta não conseguia dar bons frutos.
Até que um dia eu estava a vagar pela capital do país, já de madrugada, o sereno e o frio não me incomodavam, estava lunático, a beira do suicídio quando aquele espírito apareceu para mim.
Era uma garota de uns dezesseis, dezessete anos. De costas ela parecia normal, mas ao virar o rosto eu vi vermes saindo da sua bochecha, cheiro de enxofre da boca, ela babava e olhava para mim com o mais puro ódio.
Nesse dia, mesmo depois de grande, adulto, corajoso, violento, frustrado, senti o maior medo, achei que meu coração fosse parar. Fiquei congelado. Mijei nas calças e quase fiz coisas mais nojentas. Corri sem saber pra onde, sabia que a loucura havia se apossado de mim: Só me restava o suicídio.  “Eu sou sua ex-noiva. Lembra?”
Por ser ateu eu jamais diria que aquela aparição era um espírito. Não, aquela forma é simples degeneração cerebral, e eu andava usando muitas drogas. Não era aquilo, e os calafrios não passavam. O toque das mãos dela no meu rosto era frio como o congelador. Resisti o máximo que pude à insensatez ou a fantasmagoria. 
Daquele dia em diante os espíritos sentiram-se a vontade para aparecer, e como perceberam que eu tinha medo, não me deixavam dormir, estudar, tocar piano.  Que tipo de remédio poderia curar esta doença eu não sabia. Eles chegavam, sentavam no sofá de casa, ligavam a TV, fumavam meus cigarros, compartilhavam minhas bebidas, drogas e prostitutas. Sempre ao redor, não importa o que eu estivesse fazendo. Nem para tomar banho eu tinha privacidade, sempre um espírito a espreitar minhas ações, me colocar um terror, me fazer ter vontade de colocar uma bala na própria cabeça. 
Até que um dia um deles resolveu falar comigo: disse que não ia me deixar em paz nesta vida ou na próxima, pois eu estive com a amada dele.Eu até me senti culpado no começo. Muito atormentado na verdade, eu ainda não sabia que ele era um filha da puta mentiroso. Disse-me que em outra vida, lá pelo século XVII, eu o assassinei impiedosamente. Mais tarde eu descobri como isso aconteceu, lendo livros do Chico Xavier e indo até a Sociedade Espírita da Capital: realmente eu o havia assassinado, e faria o mesmo hoje ou a qualquer momento: Eu não me faço de cordeirinho para levar a sua alma, caro leitor. 
Este espírito do século XVII era um artesão de quinta categoria, morava em Veneza e tinha seu cargo na Guilda. Minha filha de onze anos ingressou na escola de pintura, e como o mestre estava sempre ocupado, este sujeito de nome M. acabou sendo seu professor.
Um dia, fui visitar minha amada garota na corporação e ela estava envergonhada, chorando, não queria falar. Ao observar suas roupas, percebi pequenas manchas de sangue no vestido. Ela me disse que esse senhor M. havia mostrado o pipi pra ela, e que se ela contasse pra papai ele iria matar nós dois.
Não disse nada. Levei ela pra casa e a ama tratou de dar banho, chá, sopa e colocar ela na cama. Quando ela já estava dormindo, eu peguei o primeiro instrumento que vi na frente e sai andando pelas ruas.  Quando cheguei na guilda o safado estava rindo, fez uma piada e veio me cumprimentar, como se ele fosse Iago de Shakespeare, falso, nocivo e imundo. Só que eu não era inocente como Roderigo ou Otelo.Sou mais um tipo doente de amor como Hamlet e pessismista como Macbeth.
Primeiro bati nele com as mãos, depois abri seu cérebro com o martelo. Para finalizar havia uma escopeta no armazém, estava com tanto ódio que carreguei de chumbo a arma, voltei, enfiei o cano bem no fundo da garganta do desgraçado e apertei o gatilho gritando MALEDITO! FILHO DE PUTANA!  
Até hoje ele me odeia, mas eu quero que ele se foda. A esposa dele na época tentou vingar-se de mim, mas eu quebrei uma braço dela e ela ficou tranquila. Pelo menos no século XVII. Nesta encarnação presente ela voltou fingindo me amar, hipócrita e falsa como uma cobra, no fundo ela queria que eu morresse para compensar o que eu fiz com aquele lixo do marido dela: Pobre espírito frustrado! Ela até tentou, mas a luz que existe dentro de mim é onipotente. 
E outros vieram, débitos do passado que não contavam em nenhum extrato bancário. 
Estes espíritos sedentos de sangue e vingança foram os primeiros que eu consegui dominar. Espíritos viciados em cocaína, maconha, cigarro, espíritos perversos ligados aos prazeres do corpo e atrelados a esta matéria bruta. 
Mais tarde percebi os espíritos hipócritas. Estes sim são a maior fonte de perigo. Eles falam, agem e dizem as coisas mais sinceras e boas para nossas vidas, eles nos dizem qual o melhor caminho a se tomar na vida e acabam nos protegendo, como anjos da guarda.
Eles parecem iluminados, anjos mandados pelo próprio Senhor para nos orientar em momentos difíceis. Mas no fundo, estes espíritos iluminados são tão egoístas quanto os pobres encarnados. Eles precisam se alimentar dessa falsa moral que construiu nossas sociedades, são os equivalentes aos partidos conservadores de direita, e seus valores ainda são puramente materiais.
Para atingir meu objetivo, que era resgatar um amor perdido, um desses espíritos falsos sempre me acompanhava. Percebi a sua índole pelo caminho que ele estava me conduzido: “Para ter ela de volta você precisa trabalhar, se esforçar”, ou seja, ganhar dinheiro. Mas qualquer cristão hipócrita sabe que dinheiro, desejos e posses materiais não são o caminho para chegar até o Senhor. No fundo eles sabem que vão sofrer mas eles querem a todo custo desfrutar das migalhas e sobras dos poderosos, para poder ter o mínimo de orgulho e poder pisar em alguém.  Fama e dinheiro não foram propostas de Jesus Cristo no meu modo de ver as coisas.  “Faça o que todos fazem pois este é seu desígnio espiritual”.
Mentira. No final das contas eu sabia que para ter meu amor eu teria que enriquecer, ou pelo menos me esforçar como um louco para garantir meu carro e meu apartamento. Só que esta busca de realização pessoal não tem nada a ver com o espírito.
Tem a ver com a lógica do capitalismo e da competição desenfreada e eu não queria entrar neste jogo. As sugestões dadas pelo espírito hipócrita eram até boas: “Faça academia, tenha um físico bonito. Pare de fumar. Passe em um concurso público”. Seja um produto atraente para o mercado de mulheres. Não, obrigado, meu caminho é outro.
Quando eu mostrei para esses espíritos o quão viciados e luxuosos eles são, ficaram furiosos e prometeram acabar com a minha paz.  Só que eu não sou qualquer espírito. Não sou melhor, não sou mais evoluído e muito provavelmente estou abaixo de você em muitas coisas.
Contudo, eu não vim do Nosso Lar, de Capela e de nenhuma outra colônia espiritual conhecida por aqui.
Quando estes hipócritas desencarnados ameaçaram a integridade do meu espírito eu tive que revidar: Durante um sonho, conduzi  o meu espírito para o Umbral, que é quase um inferno para aqueles que dão ouvidos para estes duas caras desmaterializados. 
Procurei o espírito mais poderoso do Umbral e deixei bem claro pra ele que se ele continuar insistindo em me atormentar, eu iria destruí-lo.  Ele riu bem alto, com os dentes podres, olhos vermelhos e ossos saindo dos ombros. Chamou toda a horda de espíritos ruins para me colocar medo, disse que por ter feito isto eu jamais sairia do sonho, morreria ali mesmo e seria escravo deles.
Enquanto ele falava eu via cenas de brigas, mortes, gritos de histeria, adultos transando freneticamente, orgias no meio da lama e vozes e mãos que tentavam pegar em mim e me arrastar, me conduzir para este pequeno inferno.
Quando percebi que realmente estava para desencarnar, tive fé: Chamei por Deus do fundo de minha alma e parece que fez efeito. Uma luz começou a emanar do meu espírito, ficando cada vez mais intensa ao ponto de meu espírito tornar-se uma labareda  e fritar todos espíritos do Umbral.  Leia denovo esta frase: Fritar. Quem foi que disse que espíritos não sentem calor e frio? Que não podem sentir dor? Eles podem inclusive morrer definitivamente, mas isso eu vou deixar pra lá. 
Esta história não vai ser contada por André Luiz, Fénelon e nenhum outro, a sociedade espírita vai dizer que eu sou louco e inventei tudo isso, quiça até me processar. 
De uns tempos pra cá coisas estranhas tem acontecido. Eu continuo vendo, sentindo espíritos malignos em toda parte, encarnados e desencarnados. A diferença é que os mortos inteligentes passaram a me respeitar e os burros, duas caras a ter medo. Assim que eu gosto, agora posso viver minha vida humildemente. 
Quando algum espírito desavisado entra na minha casa, ele toma um susto tão grande que nunca mais volta. Agora, sou eu quem assusta os espíritos horrorosos dos mundos ínferos, estes que vivem a vagar por aqui e nos dizer o que temos que fazer.
E vou continuar assim, pois não há nenhum mal que possa chegar até mim e sair ileso.  Parece estranho, mas sou eu quem coloca os fantasmas para correr, eles tem medo de mim e os mais sábios me respeitam como um Deus. Nenhum deles se mete comigo ou com quem eu amo.
Hoje estou protegido, calmo e cada dia mais forte. Como diria Nietzsche, o que não nos mata, nos fortalece.  Fico feliz em saber que nem todo espírito aqui na Terra está expiando. Não é este o meu caso. Não tenho dívidas e aqueles que querem cobrar o que eu não devo, merecem sofrer. Eu sou sádico e sei  pegar pesado com quem gosta de ser mal. Entretanto sou uma alma caridosa e nada me alegra mais que gentilezas. Só que o mundo não é feito apenas de pessoas gentis. Muitos hipócritas vivos e mortos e eu não tenho paciência com um nem com outro. 
Não sou apenas um espírito. Sou plasma. Sou fogo. Sou energia. Sou luz. Portanto posso fazer muito mais do que qualquer humano. Não sou melhor nem pior que você: Sou diferente, sou de outro sistema.  Um dia vou voltar pra lá e contar para o meu povo como vocês ainda são patéticos aqui, encarnados ou desencarnados. Entretanto, eu ainda tenho fé na humanidade. Mesmo sendo tolos, vocês vão atingir uma pequena evolução moral daqui uns trezentos anos. Tenham fé e lutem: O medo é a fonte de todos os prazeres.



In memoriam

Chico Xavier


Clarissa Lake - Experience #1

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