Sunday, 27 August 2017

O Cartaz

Ao passar na rua vê-se um poste com um cartaz impresso em folha de papel cartão: como reconquistar a pessoa amada. Jogo búzios. Afasto rival. E um número de telefone e serviço de mensagens. As buzinas da estrada são quase miúdas, imperceptíveis.
Um jogo de talheres prateados em oferta na vitrine de uma loja. O semáforo fecha. Não há nenhuma nuvem, apenas o sol ilumina e aquece. Uma gota de suor escorre no rosto de um transeunte. As ruas repetem e imitam umas as outras. Prédios de seis e três andares.
O sorvete torna-se o maior desejo perverso do momento. E o açaí. O din din. O sacolé. O geladinho. Água. As pessoas precisam tomar muita água. Falar sobre chuva é um tabu. Uma piada de mal gosto. Sem previsão de chuvisqueiro qualquer. O tempo passa.
É um deserto civilizado. Organizado em quadras e blocos, classificado em números e letras. Isso é público. Aquilo é privado. Este é o meu sangue. Essa é a nossa história. Um lindo ipê resplandece com suas fracções amarelantes.
É um novo dia, uma nova possibilidade, um novo sonho. Em cinco anos melhorar a perspectiva econômica. Passar em um concurso público, comprar um casa, casar, casualmente graduar-se, colar grau. Com cinco anos disponíveis construímos estradas, modelamos uma maquete daquilo que poderia ser perfeito.
Não há água. Encontraremos a solução para este problema, nem que tenhamos que cavar e criar um lago artificial. Qualquer dia as ruas vão se desprender do solo e elevar-se até os céus. Como reconquistar a pessoa amada. Faço massagem, Fulana de tal. Os cidadãos importaram as transações burocráticas para seu seio. O procedimento. O processo. Uma forma técnica e segura de controlar o caos rotineiro.
Escovar os dentes. Tomar café. Nadar. Ler pilhas de textos, escrever pilhas de textos. Seguir dogmaticamente todas as etapas do procedimento. Do processo. Uma ligação que espera ser atendida. Um alerta vermelho indicando que há uma nova mensagem de texto. O tempo não passa.
Lojas de colchões umas ao lado das outras. O semáforo amarela. Durante o dia o comércio abre as portas. Á noite algumas delas abrem as pernas. Pagar as contas é preciso. Sustentar a filha de três anos. Comprar o celular mais caro do mercado. Passear de iate. Comprar joias europeias.
Ter certeza do futuro e ser grato e abençoado numa vida de sucesso. Obrigado pai. Você fez de mim uma pessoa. Não há praia por aqui. Apenas o deserto. Um avião há mais de mil metros de altura. Fazemos o check-in e nem sinal de piloto. Decolar. Um pouco de ansiedade bate no peito. Uma criança chora no colo da mãe. Devo partir ou deveria partir-me?
Centenas de viaturas e patrulhas. Ninguém é preso de verdade. Atrás da cortina do teatro homens em ternos finos apertam mãos, sorriem e tapinhas nas costas. Uma maleta repleta de dólares é encontrada no Lago Norte. Milhares de policiais procedem de acordo com a lei mas nenhum bandido é preso.
Os professores ensinam e os alunos não aprendem. Depois da escola não vai ter trabalho. Fazer faculdade, fazer família, fazer farra, fazer festa, fazer-fazer e depois não fazer mais nada. Moradores de rua procuram algo no chão. Parece que eles nunca vão encontrar.
Os poetas estão todos mortos ou presos. Facínoras da linguagem. Terroristas verbais. No princípio era o verbo. Depois passamos a acreditar nessas coisas, aos pouquinhos. Temos muita fé. Ah! Se eu pudesse, pintaria o museu de preto. Dançaria samba sob o teto do Congresso Nacional. Atearia fogo no Palácio do Itamaraty. Juraria pela alma da minha mãe amar, ser fiel, patriota, monogâmico, religioso sem ser fanático, trabalhador, e morreria com dignidade: devaneios de um cidadão frustrado.
Como reconquistar a pessoa amada. Um shortinho e um olhar notívago na Asa Norte -oi amor vamos namorar?- Um menino negro vem me perguntar se quero isso ou aquilo. O desejo de ser menos hipócrita. A sujeira escorre do Palácio do Planalto, lava a Esplanada dos Ministérios e escorre para o leste e para o oeste.
Temos de orar para melhorar a vida dos outros. Só que nada disso acontece. Fazer parte de uma história que já sabemos o final. Somos personagens dela, mas por alguma incongruência sintática, estamos inaptos a agir. Um sonho intenso. Um raio vivido. Desfaz-se no ar. Desintegra-se. Corrompe-se e desaparece.
Uma loja de ideias. Na vitrine livros, teses e diplomas. O tempo passou. Agora somos mais sérios. As brincadeiras do colégio servem como uma porcelana de alta qualidade na memória. Setor de Hotéis. Setor Hospitalar. Setor de Becos. Setor de Bocas. Setor de Bundas. Setor de Solidão. O que é vulgar tornou-se banal. O fútil sagrado. O bem-estar numa pilastra. Os ipês brancos como neve. Não sabemos se a neve é branca. Se a cachaça no boteco ao lado é transparente. Se o álcool pode trazer algum conforto e alegria para uma alma devastada.
Um jogo de futebol ao vivo no aparelho ligado na loja em frente. O semáforo fica verde. Mas ainda não podemos passar. Temos de esperar com resignação. Paciência, muitos quilos de paciência. O azul de um céu desanuviado versus o cinza do cotidiano. O pai de família beija a esposa mecanicamente antes de ir para o trabalho. A van já levou os pequenos para a escola. Estes vão crescer e fazer universidade pública. Doutores, juízes, médicos, advogados e psicanalistas.
Um artista tenta sobreviver com suas manobras antes que o sinal fique verde. Corrupção e tédio são as cores favoritas que pavimentam o âmago inescrutável da cidade. Como falar a verdade sem ser indelicado. Educar os filhos com responsabilidade. Amar.
Não, não há uma flor brotando no asfalto. E as rosas esquecem os próprios espinhos. Regar as plantas e alimentá-las com restos de alimentos. O tempo passado. Aos domingos almoçar na casa da sogra, jogar conversa fora, dar risada. A sobremesa é a parte mais gostosa. Planos para o futuro. Socialmente educados. Formalmente domesticados.
Acabou o espaço para guardar sapatos no armário. Um taxista pega o telefone e tira uma foto de um anúncio: como reconquistar a pessoa amada. Em uma outra parte da cidade, próxima ao frescor do lago, no banquinho de concreto, perto de um ipê de folhas brancas, está um par de seres prestes a reinventar todas as dimensões e galáxias. Há uma massa magenta magnífica, uma aura de sinceridade, respeito e desejo.
Ele segura a mão dela. Ela olha para ele com aqueles olhos castanhos cor de mel, o cabelo preto e longo amarrado. Ela usa uma chinela simples, um short jeans e uma regata branca. Um brinco prata metálica em formato de quarto crescente da lua. Um relógio desses mais baratos e vagabundos. Nesta noite amena uma boca encontrou outra boca. E o que era para ser apenas um beijo foi uma revolução estelar. Uma explosão cósmica. O tempo parou.
As folhas brancas do ipê, o concreto do banquinho, o lago orvalhado, do outro lado inverso da cidade, o semáforo quebra. O universo é capaz de produzir momentos belamente curtos. Coragem. Um homem feito de ferro/à prova de balas ainda não é imune a ataques de paixão. Olhos de cigana obliqua e dissimulada. É muito cedo para tirar conclusões. O objeto do seu estudo tem de estar bem definido. Então aplique o método. Processo. Procedimento.
Uma fila de desempregados com currículos nas mãos. O semáforo volta a ficar vermelho. Alguns são abençoados por Deus. Outros são idiotas. Aqueles tem futuro. Estes não. Passatempo. Ler livros no ponto de ônibus. Biblioteca no meio da rua. Há alguns cartazes pendurados no ponto: Faço TCC. Revisão de monografia. Curso de Esperanto. Como reconquistar a pessoa amada. Tarô. Quiromancia.
No sonho de uma criança um gato corre pela neve. Num jardim verde há flores satúrnias: amor-perfeito, escovinha, rosa colombiana. Outro cartaz pregado na beirada de um prédio: garoto de programa. Gostoso, bonito e discreto. Whatz: 55-61-98160-8312. Só atendo mulheres solteiras. Rick.
Antes dele falar o maravilhosamente óbvio ela responde: -Eu sei- E um sorriso mútuo perfuma o ambiente.
Uma arara-canindé pousa no galho de um ipê vermelho. Lavar as roupas nos dias certos. Arrumar o apartamento. Pagar as contas de água e luz. Guardar dinheiro para viajar nas férias. Pentear o cabelo. Passar perfume. Processo. Procedimento. Método. De repente ela fica fria como o inverno e com uma mente clara como a neve branca. Há um inverno profundo e esperamos ansiosamente a primavera. Uma piada é a melhor maneira de sair de uma situação difícil.
Não existe amor na escravidão. O semáforo fica dourado. Entender um ao outro mesmo a distância. O medo. A dúvida. A liberdade e a fé superam todas as barreiras. Rosa colombiana não é uma flor satúrnia, ela o corrige. Ela sempre tem razão. Ele é um burro e ainda não sabe disso. Como reconquistar a pessoa amada. O tempo passará. O semáforo ficará marrom. Depois azul. Laranja. Bate um vento forte e o cartaz desprende-se do poste e para no meio da avenida. Um ônibus passa por cima. Depois um carro de passeio. A dona de casa compra os talheres da promoção. O sorvete congela o cérebro. Um grande copo d'água. Um residente das ruas deita em um colchão à amostra e é expulso de lá. Os passageiros aguardam o avião decolar. O pranto da criança é interrompido pelo seio reconfortante da mãe.  Uma jovem começa a pintar o Museu Nacional com uma brocha e um balde de tinta preta. Como reconquistar a pessoa amada. O artista termina a performance mas não recebe nada por isso. O gato que estava correndo no sonho da criança para de correr pois a criança acordara. O taxista passa de novo pelo lugar e o cartaz não está mais lá. Está no chão. Então o taxista pega a folha de papel cartão enquanto o semáforo está vermelho: como reconquistar a pessoa amada. Não vai chover nem tão cedo.

C. H. Barbosa - O Cartaz

Monday, 24 July 2017

Camila

Neste exposição continuamos a tratar das personagens da Eneida. Desta feita trataremos de Camila, rainha dos volscos e amazona. Os volscos são um povo latino aliados de Turno na guerra por Lavínia e pelo Lácio. Camila é um tipo de comandante das forças das guerreiras amazonas. Amazona, no sentido etimológico grego significa "sem seio", mazon significa seio e a é a partícula de negação.
O livro XI da Eneida é dedicado a tratar desta espetacular guerreira. Um livro sui generis no tratamento de heroínas na história da literatura clássica. A Ilíada de Homero é um livro militar e patriarcal, no qual pode-se observar grandes feitos de heróis como Diomedes, Aquiles, os dois ajaxes, Hector e tantos outros homens. Dentre as muitas diferenças de estilo e composição, Virgílio destaca-se novamente como um poeta além de Homero ao configurar uma novidade na literatura épica, o tema da mulher como a guerreira bela e boa (kalos kagathos) em busca da bela morte (kalos thanatos).
Metabo e Casmila são os pais de Camila e líderes das gentes dos volscos. Ainda quando Camila era infante Metabo torna-se um líder odiado por seus vassalos, cujas tramas e conspirações para retirar Metabo do poder acabam por fazer o pai e a criança terem de fugir das tentativas de assassinato.
Apertando a criança contra o peito  o pai carrega Camila no colo, no rumo das cordilheiras e dos bosques desertos, ambos sendo perseguidos pelos vassalos de Metabo.
Não obstante a fuga, Metabo encontra uma dificuldade extrema em sua escapada, um problema exposto pelas próprias condições da natureza. O rio Amaseno lhe corta e impede o caminho, pois o rio está cheio de espuma terrosa cobrindo suas ribeiras por causa das recentes chuvas. Poder-se-ia cruzar o rio a nado, caso não estivesse com a pequena criança no colo.
Metabo então pondera uma série de planos para salvar sua filhinha, enquanto os volscos vem no encalço para tirar-lhe a vida. O pai desesperado acorre a uma estratégia bela e ousada. Amarra a criança na base de sua lança junto com pedaços de madeira que havia encontrado por ali mesmo, deixou a pequena Camila muito bem protegida e, girando-a para o alto faz uma prece para a deusa caçadora Diana.
Antes de arremessar a lança com a criança para a outra margem do rio Amaseno, Metabo pede para a virgem nascida da augusta Latona, Diana, para amparar a vida da criança neste momento de instabilidade. Vendo a turba de inimigos aproximar-se, Metabo atira a lança para a outra margem do rio, tendo sucesso na sua empreitada, o pai nada até a outra margem do rio e consegue salvar Camila, devotada à deusa Diana.
Teto nenhum abrigou o pai com a criança, nem cidade com fortes muralhas, e Metabo não queria rebaixar-se a outrem em troca de abrigo. Portanto Metabo passou a viver como pastor solitário nos montes agrestes. Cria a sua filha em cavernas hórridas, matagais inospitaleiros, alimentando-a com leite de égua.
Mal começou Camila a firmar os pezinhos no solo, Metabo a equipa com um dardo pontudo e pelos ombros passa arco e aljava. Desde pequena Camila aprendeu a manejar armas de guerra e adquire grande habilidade caçando animais silvestres, aves como o cisne e o grou. Muitas matronas tirrenas esforçavam-se em vão para ter Camila como consorte dos filhos, mas ela já estava contente por pertencer a Diana e o culto da virgindade sem manchas.
Camila cresce sem o amparo maternal. Sem um lar. Susceptível às vicissitudes da natureza inexpugnável. Ela enfrenta um certo nível de dificuldades sociais e as supera. O mundo de Camila, como podemos observar até este capítulo, é um mundo bélico masculino. Camila é decisiva como demonstração de poder feminino na sociedade romana. A morte gloriosa já não é privilégio de guerreiros como Eneias, Turno, Palante ou Mezêncio.
Diana Trívia é a deusa protetora de Camila. Diana acolheu as preces de Metabo e a partir daquele momento passou a amar a pequena guerreira amazona. Tanto era essa afeição da deusa pela mortal que Diana manda a ninfa Ópis exterminar qualquer guerreiro, latino ou troiano, que porventura venha a tirar a vida de Camila.
Como já foi muito bem trabalhado na Ilíada, o tema da aristeia também retorna na obra de Virgílio. Na Ilíada temos os grandes feitos de Diomedes ao entrar no campo de batalha possuído pela deusa Atena e conseguir ferir os deuses Ares e Afrodite, além de causar uma matança sem precedentes nas forças troianas. Ainda na Ilíada há os grandes feitos de Agamemnon e Aquiles, sendo este último absurdamente espetacular. Durante a aristeia de Aquiles, o guerreiro solta um grito no campo de batalha que acaba por matar vários guerreiros troianos.
A aristeia ou os grandes feitos de Camila é o ponto culminante da literatura clássica. Pode ser que isso tenha existido antes de Virgílio mas este poeta latino foi quem deu corpo e alma para este tipo de composição. As Amazonas lideradas por Camila são guerreiras trácias filhas de Marte. Detestavam os homens, e, diz o mito, amputavam um dos seios para melhor manejar o arco.
Camila está no campo de batalha num momento supremo da guerra entre latinos e troianos. A protegida de Diana está ao lado das suas fiéis companheiras, Larina virgem, mais Tula e Tarpeia, firmes como machados de bronze. As armas delas estavam pintadas e desenhadas para distrair e até assustar os inimigos.
O primeiro a cair nesta cena da aristeia de Camila é Euneu, nascido de Clício, que à frente da amazona passara. Camila penetra a lança no peito de Euneu fazendo-o cair no chão vomitando sangue, e na ansiedade extrema da morte iminente, Euneu morde a terra sangrenta, tentando estancar a ferida no peito.
Então Camila golpeia Págaso e Líris, enquanto um deles tentava agarrar as rédeas do cavalo, e o outro tentava amparar o primeiro. Ambos rodam sem vida na areia. Prosseguindo a carnificina Camila atira-se contra Amastro filho de Hipotes, e ao longe, derruba com sua lança a Demofoonte e Tereu, seguidos por Harpálico e o valente Crômis.
Órnito é a próxima vítima de Camila. Um caçador com vestimenta fantástica, ombros largos cobertos com a pele de um touro; a cabeça de um lobo com os dentes arreganhados lhe serve de elmo. Uma lança potente na mão direita. Camila derruba Órnito muito facilmente e ainda lhe diz:

"Siluis te, Tyrrhene, feras agitare putasti?
Aduenit qui uestra dies miliebribus armis
uerba redarguerit. Nomen tamen haud leue patrum
manibus hoc referes, telo cecidisse Camillae".

(Eneida, Livro XI, versos 686-689)

Traduzindo livremente, o que Camila disse para Órnito derrubado no chão: "Imaginava estar à caça de feras tirreno? Pois chegou o dia em que tua arrogância recebe a resposta das minhas mãos. Todavia não morrerá sem glória; Quando chegar ao inferno diga que sua morte veio das mãos de Camila".
Depois Camila vai ao encontro de Orsíloco e Butes, dois agigantados e fortes troianos. Camila enterra sua lança por baixo do elmo de Butes. Quanto a Orsíloco a guerreira amazona finge fugir até encontrar o momento ideal para enterrar o machado na cabeça do troiano.
Órnito retorna, pois ainda não havia sido morto naquele momento e desafia Camila. Órnito tenta um ardil ao dizer que Camila não sabe lutar sem um cavalo e pede para ela descer do animal e enfrentá-lo a pé. Camila entrega o cavalo para uma companheira e se adianta para a luta, com a espada na mão e o escudo limpo. Certo do efeito de sua ardileza, Órnito tenta escapar e Camila o chama de "pérfido lígure". Camila então corre como um raio até o cavalo de Órnito, o pegou pelas rédeas e sangra o inimigo ali mesmo.
A aristeia de Camila termina por aqui pois a guerreira trácia comete uma imprudência. Cloreu, sacerdote de Cibele estava a vagar pelo campo de batalha, com suas vistosas armas de bronze e ouro entremeado e à cavalo, um arco de ouro trazido da Lícia e um escudo requintado. A bela virgem, talvez por querer pendurar na entrada do templo as armas troianas de Cloreu, ou mesmo em suas caçadas usar dessas armas excelentes do adversário, em desejo ardia para apoderar-se destas armas.
Contudo, Arrunte estava emboscando Camila já fazia algum tempo. Onde quer que Camila fosse Arrunte a seguia com seu cavalo, esperando obter uma vitória gloriosa e fácil. Arrunte então faz uma prece para Apolo, pedindo para o deus não os espólios da virgem guerreira mas a fama merecida por ter abatido uma adversária venturosa. Apolo concedeu à prece de Arrunte e deixou que prostrasse sem vida a Camila imprudente.
Arrunte lança um dardo certeiro para atingir a rainha dos volscos e Camila nada suspeita, nem ouve no ar o estridor ou a farpa zunir no seu curso. O dardo chega a encravar-se no peito direito e embeber-se inteiramente no sangue inocente da virgem. Trêmulas, as companheiras de Camila a sustentam, sem vida.
Tal como um lobo, antes mesmo de ser perseguido por dardos, Arrunte corre e esconde-se nas brenhas por sendas e vias transversas, como se fosse um lobo e tivesse matado um pastor por traição ou a um touro soberbo, consciente da audácia do seu próprio feito, corre com a cauda entre as pernas colada ao ventre, na selva procura esconder-se de medo.
Já moribunda, Camila ainda tenta arrancar a longa lança, porém a ponta de ferro fixara-se profundamente nos ossos. Com a grande perda de sangue, Camila enlanguesce, seus olhos se fecham com o letal frio. Das faces o belo rosado apaga-se. Manda então chamar uma de suas companheiras, Aca, e lhe comunica as palavras finais:
"Até aqui me foi possível lutar mas esta ferida cruel me mata. Por todos os lados só vejo as trevas adensarem-se. Diga a Turno as últimas palavras do campo de luta. Que Turno assuma o comando dos muros e afaste o inimigo. E agora, adeus". Ao dizer isso, a rainha virgem solta as rédeas e ao solo desliza sem resistência. Aos poucos a vida dos membros lhe escoa. Com o próprio peso da morte a cabeça dobrou para o lado, lânguida e inerte. Dos braços sem força, as armas lhe escapam. Foge-lhe a vida, indignada, acolhendo-se ao reino das sombras.
Neste instante a ninfa Ópis, emissária de Diana Trívia, estava sentada num alto monte a observar sem paixão os aspectos da luta. Quando Ópis ouve os gritos e o pranto das jovens guerreiras que fora presa da morte odiosa a forte Camila, profundo geme no peito e tais palavras emite:
"Ai! Você pagou muito caro donzela animosa, a ousadia de bater-se contra os Fados, de bater-se contra os fortes troianos. Não te valeu viver no deserto para o culto de Diana, nem como nós trazer no ombro uma aljava com as flechas sagradas. Tua rainha, porém, não te esquece nesse último transe, nem ficará tua morte esquecida entre as gentes futuras e não ficarás com a fama de não teres sido vingada.
Diana já havia dito "Quem quer que tiver a ousadia de violar o corpo sagrado de Camila o castigo merecido há de ter". Bem na falda de um monte foi para onde a ninfa voou para encontrar Arrunte. Ao avistar Arrunte, Ópis o intima: "Para onde vai correndo assim? Vire seus passos para cá. O assassino de Camila já vai receber o seu prêmio". A ninfa trácia falou e da aljava dourada tirando uma flecha ligeiramente, o belo arco afastou e, encurvando-o, repuxa com a força máxima a corda até unirem-se as pontas no centro, vindo ela então a tocar com a mão esquerda a base da ponteira na extremidade da seta, e com a mão direita encostada no peito aprontar o disparo.
A um só tempo Arrunte ouve o som do ar, o sibilo da seta e o próprio ferro encravar-se-lhe nas entranhas adentro. Ei-lo a estorcer-se nas vascas da morte, estendido na poeira desconhecida do campo. Os companheiros esqueceram dele. Ópis com suas asas ligeiras volta para o Olimpo sereno:

"Cur", inquit, "diuersus abis? Huc dirige gressum,
huc periture ueni, capias ut digna Camillae
praemia. Tune etiam telis moriere Dianae". 
Dixit et aurate uolucrem Threissa sagittam
deprompsit pharetra cornuque infensa tetendit
et duxit longe, donec curuata coirent
inter se capita et manibus iam tangeret aequis, 
laeua aciem ferri, dextra neruoque papillam.
Extemplo teli stridorem aurasque sonantes
audiit una Arruns haesitque in corpore ferrum. 
Illum exspirantem socii atque extrema gementem
obliti ignoto camporum in puluere linquunt,
Opis ad aetherium pennis aufertur Olympum.

(Eneida, Livro XI, versos 855-867)


Carlos H. Barbosa - A arte da guerra ou Camila 









Wednesday, 24 May 2017

Thursday, 11 May 2017

O cartaz

Ao passar na rua vê-se um poste com um cartaz impresso em folha de papel cartão: como reconquistar a pessoa amada. Jogo búzios. Afasto rival. E um número de telefone e serviço de mensagens. As buzinas da estrada são quase miúdas, imperceptíveis.
Um jogo de talheres prateados em oferta na vitrine de uma loja. O semáforo fecha. Não há nenhuma nuvem, apenas o sol ilumina e aquece. Uma gota de suor escorre no rosto de um transeunte. As ruas repetem e imitam umas as outras. Prédios de seis e três andares.
O sorvete torna-se o maior desejo perverso do momento. E o açaí. O din din. O sacolé. O geladinho. Água. As pessoas precisam tomar muita água. Falar sobre chuva é um tabu. Uma piada de mal gosto. Sem previsão de chuvisqueiro qualquer. O tempo passa.
É um deserto civilizado. Organizado em quadras e blocos, classificado em números e letras. Isso é público. Aquilo é privado. Este é o meu sangue. Essa é a nossa história. Um lindo ipê resplandece com suas fracções amarelantes.
É um novo dia, uma nova possibilidade, um novo sonho. Em cinco anos melhorar a perspectiva econômica. Passar em um concurso público, comprar um casa, casar, casualmente graduar-se, colar grau. Com cinco anos disponíveis construímos estradas, modelamos uma maquete daquilo que poderia ser perfeito.
Não há água. Encontraremos a solução para este problema, nem que tenhamos que cavar e criar um lago artificial. Qualquer dia as ruas vão se desprender do solo e elevar-se até os céus. Como reconquistar a pessoa amada. Faço massagem, Fulana de tal. Os cidadãos importaram as transações burocráticas para seu seio. O procedimento. O processo. Uma forma técnica e segura de controlar o caos rotineiro.
Escovar os dentes. Tomar café. Nadar. Ler pilhas de textos, escrever pilhas de textos. Seguir dogmaticamente todas as etapas do procedimento. Do processo. Uma ligação que espera ser atendida. Um alerta vermelho indicando que há uma nova mensagem de texto. O tempo não passa.
Lojas de colchões umas ao lado das outras. O semáforo amarela. Durante o dia o comércio abre as portas. Á noite algumas delas abrem as pernas. Pagar as contas é preciso. Sustentar a filha de três anos. Comprar o celular mais caro do mercado. Passear de iate. Comprar joias europeias.
Ter certeza do futuro e ser grato e abençoado numa vida de sucesso. Obrigado pai. Você fez de mim uma pessoa. Não há praia por aqui. Apenas o deserto. Um avião há mais de mil metros de altura. Fazemos o check-in e nem sinal de piloto. Decolar. Um pouco de ansiedade bate no peito. Uma criança chora no colo da mãe. Devo partir ou deveria partir-me?
Centenas de viaturas e patrulhas. Ninguém é preso de verdade. Atrás da cortina do teatro homens em ternos finos apertam mãos, sorriem e tapinhas nas costas. Uma maleta repleta de dólares é encontrada no Lago Norte. Milhares de policiais procedem de acordo com a lei mas nenhum bandido é preso.
Os professores ensinam e os alunos não aprendem. Depois da escola não vai ter trabalho. Fazer faculdade, fazer família, fazer farra, fazer festa, fazer-fazer e depois não fazer mais nada. Moradores de rua procuram algo no chão. Parece que eles nunca vão encontrar.
Os poetas estão todos mortos ou presos. Facínoras da linguagem. Terroristas verbais. No princípio era o verbo. Depois passamos a acreditar nessas coisas, aos pouquinhos. Temos muita fé. Ah! Se eu pudesse, pintaria o museu de preto. Dançaria samba sob o teto do Congresso Nacional. Atearia fogo no Palácio do Itamaraty. Juraria pela alma da minha mãe amar, ser fiel, patriota, monogâmico, religioso sem ser fanático, trabalhador, e morreria com dignidade: devaneios de um cidadão frustrado.
Como reconquistar a pessoa amada. Um shortinho e um olhar notívago na Asa Norte -oi amor vamos namorar?- Um menino negro vem me perguntar se quero isso ou aquilo. O desejo de ser menos hipócrita. A sujeira escorre do Palácio do Planalto, lava a Esplanada dos Ministérios e escorre para o leste e para o oeste.
Temos de orar para melhorar a vida dos outros. Só que nada disso acontece. Fazer parte de uma história que já sabemos o final. Somos personagens dela, mas por alguma incongruência sintática, estamos inaptos a agir. Um sonho intenso. Um raio vivido. Desfaz-se no ar. Desintegra-se. Corrompe-se e desaparece.
Uma loja de ideias. Na vitrine livros, teses e diplomas. O tempo passou. Agora somos mais sérios. As brincadeiras do colégio servem como uma porcelana de alta qualidade na memória. Setor de Hotéis. Setor Hospitalar. Setor de Becos. Setor de Bocas. Setor de Bundas. Setor de Solidão. O que é vulgar tornou-se banal. O fútil sagrado. O bem-estar numa pilastra. Os ipês brancos como neve. Não sabemos se a neve é branca. Se a cachaça no boteco ao lado é transparente. Se o álcool pode trazer algum conforto e alegria para uma alma devastada.
Um jogo de futebol ao vivo no aparelho ligado na loja em frente. O semáforo fica verde. Mas ainda não podemos passar. Temos de esperar com resignação. Paciência, muitos quilos de paciência. O azul de um céu desanuviado versus o cinza do cotidiano. O pai de família beija a esposa mecanicamente antes de ir para o trabalho. A van já levou os pequenos para a escola. Estes vão crescer e fazer universidade pública. Doutores, juízes, médicos, advogados e psicanalistas.
Um artista tenta sobreviver com suas manobras antes que o sinal fique verde. Corrupção e tédio são as cores favoritas que pavimentam o âmago inescrutável da cidade. Como falar a verdade sem ser indelicado. Educar os filhos com responsabilidade. Amar.
Não, não há uma flor brotando no asfalto. E as rosas esquecem os próprios espinhos. Regar as plantas e alimentá-las com restos de alimentos. O tempo passado. Aos domingos almoçar na casa da sogra, jogar conversa fora, dar risada. A sobremesa é a parte mais gostosa. Planos para o futuro. Socialmente educados. Formalmente domesticados.
Acabou o espaço para guardar sapatos no armário. Um taxista pega o telefone e tira uma foto de um anúncio: como reconquistar a pessoa amada. Em uma outra parte da cidade, próxima ao frescor do lago, no banquinho de concreto, perto de um ipê de folhas brancas, está um par de seres prestes a reinventar todas as dimensões e galáxias. Há uma massa magenta magnífica, uma aura de sinceridade, respeito e desejo.
Ele segura a mão dela. Ela olha para ele com aqueles olhos castanhos cor de mel, o cabelo preto e longo amarrado. Ela usa uma chinela simples, um short jeans e uma regata branca. Um brinco prata metálica em formato de quarto crescente da lua. Um relógio desses mais baratos e vagabundos. Nesta noite amena uma boca encontrou outra boca. E o que era para ser apenas um beijo foi uma revolução estelar. Uma explosão cósmica. O tempo parou.
As folhas brancas do ipê, o concreto do banquinho, o lago orvalhado, do outro lado inverso da cidade, o semáforo quebra. O universo é capaz de produzir momentos belamente curtos. Coragem. Um homem feito de ferro/à prova de balas ainda não é imune a ataques de paixão. Olhos de cigana obliqua e dissimulada. É muito cedo para tirar conclusões. O objeto do seu estudo tem de estar bem definido. Então aplique o método. Processo. Procedimento.
Uma fila de desempregados com currículos nas mãos. O semáforo volta a ficar vermelho. Alguns são abençoados por Deus. Outros são idiotas. Aqueles tem futuro. Estes não. Passatempo. Ler livros no ponto de ônibus. Biblioteca no meio da rua. Há alguns cartazes pendurados no ponto: Faço TCC. Revisão de monografia. Curso de Esperanto. Como reconquistar a pessoa amada. Tarô. Quiromancia.
No sonho de uma criança um gato corre pela neve. Num jardim verde há flores satúrnias: amor-perfeito, escovinha, rosa colombiana. Outro cartaz pregado na beirada de um prédio: garoto de programa. Gostoso, bonito e discreto. Whatz: 55-61-98160-8312. Só atendo mulheres solteiras. Rick.
Antes dele falar o maravilhosamente óbvio ela responde: -Eu sei- E um sorriso mútuo perfuma o ambiente.
Uma arara-canindé pousa no galho de um ipê vermelho. Lavar as roupas nos dias certos. Arrumar o apartamento. Pagar as contas de água e luz. Guardar dinheiro para viajar nas férias. Pentear o cabelo. Passar perfume. Processo. Procedimento. Método. De repente ela fica fria como o inverno e com uma mente clara como a neve branca. Há um inverno profundo e esperamos ansiosamente a primavera. Uma piada é a melhor maneira de sair de uma situação difícil.
Não existe amor na escravidão. O semáforo fica dourado. Entender um ao outro mesmo a distância. O medo. A dúvida. A liberdade é a fé superam todas as barreiras. Rosa colombiana não é uma flor satúrnia, ela o corrige. Ela sempre tem razão. Ele é um burro e ainda não sabe disso. Como reconquistar a pessoa amada. O tempo passará. O semáforo ficará marrom. Depois azul. Laranja. Bate um vento forte e o cartaz desprende-se do poste e para no meio da avenida. Um ônibus passa por cima. Depois um carro de passeio. A dona de casa compra os talheres da promoção. O sorvete congela o cérebro. Um grande copo d'água. Um residente das ruas deita em um colchão à amostra e é expulso de lá. Os passageiros aguardam o avião decolar. O pranto da criança é interrompido pelo seio reconfortante da mãe.  Uma jovem começa a pintar o Museu Nacional com uma brocha e um balde de tinta preta. Como reconquistar a pessoa amada. O artista termina a performance mas não recebe nada por isso. O gato que estava correndo no sonho da criança para de correr pois a criança acordara. O taxista passa de novo pelo lugar e o cartaz não está mais lá. Está no chão. Então o taxista pega a folha de papel cartão enquanto o semáforo está vermelho: como reconquistar a pessoa amada. Não vai chover nem tão cedo.

C. Henrique Barbosa - O Cartaz


Monday, 24 April 2017

As Fúrias

Antes de começar este capítulo sobre As Fúrias é necessário ponderar duas breves considerações. Primeiro, os deuses da literatura clássica não são alegorias nem metáforas. Alegoria é uma figura de linguagem de uso retórico que consiste em extrapolar a semântica de dado objeto, seja este uma pintura, uma escultura ou um poema. 
Uma alegoria não é um conjunto de metáforas como vulgarmente pode-se ouvir por aí. Um conjunto de metáforas é, por exemplo, uma descrição de um objeto onde suas partes são tomadas em comparação a outras. Ao descrever a mulher amada o amante pode dizer: seus olhos são o sol, sua boca é uma rosa, seu corpo é uma escultura, etc, isto é um conjunto de metáforas. 
Esta ressalva é importante pois seguindo um comentário de J. R. R. Tolkien, autor de uma saga épica moderna, O Senhor dos Anéis, a alegoria destrói a perspectiva real das personagens. O Senhor dos Anéis não é uma alegoria da Segunda Guerra Mundial, os Hobbits não são alegorias de alguma civilização existente.
Ao considerar alguma personagem ou espaço como alegoria, o sentido real da representação destes na obra perde seu valor e passa a ser mera marionete volúvel do desejo egocêntrico do leitor. 
O mesmo acontece nas obras épicas clássicas. Zeus não é uma alegoria do poder. É uma personagem com características específicas dentro da Ilíada e da Odisseia. Do mesmo modo devemos tratar das Fúrias. As Fúrias não são meras alegorias para representar emoções humanas desgastadas e vis. São personagens ativas com características próprias dentro da obra. 
A segunda consideração concerne ao gênero da existência humana presente na literatura épica. A maioria dos leitores não se importam em apreciar tal tipo de obra com demasiado peso trágico. As questões propostas pelos autores clássicos são essenciais para a compreensão da existência humana e seu lugar dentro de uma sociedade politicamente organizada.
São questões simples, que por isso mesmo engrandecem o valor universal da obra: quem poderia ousar descrever o quanto uma pessoa pode amar outra, a ponto de deixar todos seus deveres cívicos de lado e lutar contra seus próprios amigos e aliados de guerra para ter esse amor? Já vimos como isso aconteceu com Elisa. Aquiles está nesta primeira questão, pois ele deixa de lado seu dever militar para defender seu amor por Briseida, e com isto leva seus compatriotas e amigos para a escuridão.
Entender porque nós humanos fazemos o que fazemos. Porque enganamos nossos melhores amigos? Porque recompensamos nossos inimigos? Porque vamos à guerra e sacrificamos nossas vidas por uma causa perdida? Porque nós perdoamos os outros desafiando a lógica e as leis da natureza com um único e simples ato de compaixão? O ser humano é fraco e cheio de defeitos. A tragédia nos traz isso como uma tapa na cara, mas ao mesmo tempo como um beijo suave do ente amado. 
O herói moderno muitas vezes é alguém caído, corrupto, destruído emocionalmente e que na busca da sua redenção acaba encontrando um fim trágico exposto pelas forças ocultas do destino. Como é o caso do Fausto de Goethe. O vício, a fofoca, o orgulho e a vingança são características universais da humanidade. Quem não se identifica com esse tipo de fraqueza humana é alguém com pouca humildade. 
Naquilo que reside dentro da alma de cada um de nós, Homero, Virgílio e outros autores souberam tomar a medida certa. E dentre toda esta miríade de sentimentos humanos muitas vezes indescritíveis e por natureza ilógicos, os clássicos sempre valorizaram o principal elemento que quebra a harmonia: a raiva. 
A raiva, ou a fúria é composta daquilo que não pode ser racionalizado. Um segundo de nossas vidas tomados pela cólera pode transformar nossa história para sempre, pode nos arrojar no inferno e nos deixar solitários e vagando pelas estrelas da culpabilidade. A raiva surge naquilo que a humanidade não pode controlar pois não é inteligível. É um aspecto animal que transcende nossa alma. A fúria oblitera a capacidade humana de raciocinar de forma benevolente, de atingir algum espectro de lógica e buscar uma solução serena para beligerâncias mundanas. 
Quando o coração bate forte demais e não sabemos por que. E qual ser humano pode se considerar livre desta angústia espiritual. Quem nunca sentiu os chicotes da cólera perpetrar seus ossos não deve ser humano. A ira é um pecado capital para os católicos. É apenas um passo na ribanceira que nos faz cair na loucura, no desmedido, no puramente animal que existe dentro de cada um de nós. 
A literatura clássica é a mãe da pedagogia humana. A tragédia nos ensina a ter fé e controle sobre aquilo que amamos principalmente. Pois é justamente a perda daquilo que temos mais cuidado que pode levar ao descontrole emocional. Antes da fúria está o medo inconsciente de perdermos. O orgulho humano aliado ao medo é incapaz de aceitar a perda. E quem vive sem perder nada? As vezes por perder dez minutos no trânsito já ficamos impacientes e raivosos.
Nem os santos ou heróis são imunes á fúria. Aquiles é um exemplo, não uma alegoria como já foi dito, de bondade, beleza e justiça. E são justamente estes valores elevados que levam o herói a não aceitar uma injustiça descabida. Por ser bom e justo Aquiles perde o controle emocional e tenta assassinar o filho de Atreu. São as pessoas boas e justas as mais sensíveis à raiva, por terem um senso de justiça elevado não podem aceitar qualquer tipo de crueldade sem ter uma reação. 
A hipérbole no mais das vezes é um recurso usado para educar a civilização naquilo que é mais importante para o desenvolvimento moral de uma sociedade. Imagine um pai que para obter êxito numa empresa militar, imola a própria filha num ritual sinistro para fazer oferta para os onipotentes deuses do Olimpo. 
Este mesmo pai que sacrificou a filha retorna ao lar após dez anos de guerra e acaba sendo assassinado pela esposa e mãe furiosa em conluio com seu amante. Agora imagine o filho deste casal. Ter a irmã sacrificada num ritual por poder e riqueza, e a mãe, num ato de luxúria e ódio assassina friamente o pai. 
Que tipo de reação este miserável filho pode ter diante do iminente descontrole de seus pais? E a lei humana não o socorre numa encruzilhada destas. A lei humana diz claramente que o filho tem a prerrogativa moral de vingar-se do assassino do pai sem sofrer nenhuma penalidade. Contudo, esta mesma lei diz que um filho não pode assassinar a própria mãe. Como no verso 331, Livro III da Eneida, onde Orestes mata o filho de Aquiles tomado pelas Fúrias Ast illum, ereptae magno inflammatus amore, coniugis et scelerum Furiis agitatus, Orestes excipit incautum patriasque obtruncat aras.
Esta é apenas uma pincelada da tragédia Oresteia, escrita por Ésquilo. A literatura clássica é pesada para nossos contemporâneos e causa espanto e terror naqueles que a presenciam. Por não entender o sentido profundamente humano e pedagógico da literatura clássica, os contemporâneos a condenam por hedionda, criminosa, insidiosa. 
Um caso pueril e recente em nossa história aconteceu com a banda de blues The Doors há poucos anos. Em uma música chamada "The End" a banda narra a história de um filho que anseia por assassinar o próprio pai e ter relações sexuais com a própria mãe:

The killer awoke before dawn, he put his boots on 
He took a face from the ancient gallery 
And he walked on down the hall 
He went into the room where his sister lived, and...then he 
Paid a visit to his brother, and then he 
He walked on down the hall, and 
And he came to a door...and he looked inside 
Father, yes son, I want to kill you 
Mother...I want to...fuck you. 

(The Doors: The End - Sunset Sound Recorders/Elektra, 1967)

Traduzindo livremente: O assassino acordou antes do amanhecer/calçou suas botas/Ele deu uma olhada pela antiga galeria/e seguiu pelo corredor/ele foi até o quarto onde sua irmã morava e então ele/visitou o seu irmão e então ele/seguiu pelo corredor e/ele chegou até uma porta e ele olhou lá dentro:/Pai? _Sim filho. Eu quero te matar/Mãe? Eu quero foder você.
O impacto causado por esta citação simples da notória tragédia grega Édipo Rei fala por si mesmo. O vocalista da banda foi preso mais de uma vez no palco por recitar estes versos publicamente, considerados ofensivos para a sociedade. No álbum de estúdio eles cortaram a parte na qual o filho diz que quer transar com a mãe. A literatura clássica é uma ameaça aos tabus construídos pela nossa sociedade obsessiva. 
Não entendo e não quero entender, este é o argumento de defesa da nossa sociedade. Ou então como meu filho vai ouvir uma música dessa? Como podemos educar nossas crianças com essas atrocidades inventadas pelos gregos antigos? O senso comum é estupendo na arte de aniquilar aquilo que é belo e foi criado sem o intuito de macular os valores morais da sociedade.
Canta, ó Musa a ira do filho de Peleu, Aquiles. No proêmio da Ilíada, no Canto I, ou seja logo nos primeiros versos, o poeta invoca as imortais Musas para inspirar seu canto. As Musas são as filhas de Zeus e Mnemosine, deusa da memória.
O tópico principal que inicia a Ilíada é a Menis de Aquiles e seu efeito devastador sobre os seus camaradas aqueus. A palavra grega Menis que é convencionalmente traduzida como "ira", como no verso 1 da Ilíada, em Homero sempre denota um sentido especificamente de "ira divina". Destarte a ira de Aquiles está associada com a vingança tempestuosa dos deuses que é consequência de uma transgressão de propriedade privada divinamente sancionada pelas ordens da sociedade civil e do cosmos.
A promessa macabra de cantar os corpos dos heróis como presa para as bestas nunca é completada na Ilíada. Como na tradução de Haroldo de Campos que segue abaixo, os heróis como espólio para os cães, pasto de aves rapaces. A transgressão da propriedade privada se dá no momento em que Agamemnon, num ato de "doce estupidez" expropria Briseida do acampamento de Aquiles, num ato de orgulho por ter perdido seu próprio espólio, Criseida. Apolo então lança uma pestilência sobre as embarcações argivas e obriga Agamemnon a devolver Criseida para sua família em troca de um resgate.
A ira de Aquiles acontece, pois o herói não considera Briseida apenas como sua propriedade privada, como mero espólio de guerra, mas por ter desenvolvido um sério afeto pela sacerdotisa troiana, e quiça até tenha se apaixonado profundamente por ela. Celebrar a ira de Aquiles é uma forma de trazer As Fúrias para a cena, mas usando um recurso muito comum no teatro que é aquilo que acontece "atrás do palco" ou por detrás das cortinas. As Fúrias estão ali mas não são citadas literalmente como acontece em muitos momentos da Eneida. Observemos um trecho do proêmio da Ilíada: 

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.
Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?
O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei

(Homero - A Ilíada: Canto I - Tradução de Haroldo de Campos - Editora ARX, 2002)

Nenhum herói torna-se um cadáver insepulto na Ilíada, como é prometido no proêmio. Até mesmo Hector foi poupado dessa desgraça, pois mesmo no auge de seu desvario, Aquiles teve o bom senso de devolver o corpo do guerreiro troiano para Príamo em troca de um valoroso resgate. Seguindo esta linha de raciocínio, o que faz com que um poeta decida cantar e celebrar a loucura? A fúria como tema principal de uma obra que é um dos pilares da literatura ocidental.
A doce loucura de Agamemnon ao exigir um espólio que não era seu gera invariavelmente a ira de Aquiles e toda as consequências que seguem a isto para o desfecho e trágico final dos heróis. A doce loucura ou estupidez de Agamemnon pode ter iniciado quando ele decidiu sacrificar a própria filha Ifigênia.
No contexto da Eneida, As Fúrias são citadas em vários momentos. São elas Tisífone, Megera e Alecto. Não obstante, há um papel de destaque apenas para a mais velha das Fúrias, Alecto, dentro da Eneida. Para mais informações sobre as outras Fúrias basta dar um clique no navegador e ir na famosa wikipédia.
A primeira citação das Fúrias acontece no Livro I quando o poeta narra o assassinato de Siqueu, ex-marido de Dido, por Pigmalião, irmão dela. Pigmalião estava dominado pela influência das Fúrias:

Huic coniunx Sychaeus erat, ditissimus agri
Phoenicum, et magno miserae dilectus amore, 
cui pater intactam dederat, primisque iugarat
ominibus. Sed regna Tyri germanus habebat
Pygmalion, scelere ante alios immanior omnes.
Quos inter medius uenit furor. Ille Sychaeum
impius ante aras atque auri caecus amore
clam ferro incautum superat, securus amorum
germanae; factumque diu celauit et aegram
multa malus simulans uana spe lusit amantem. 

(Eneida - Livro I: versos 344-351)

No capítulo anterior, Lavínia, há algum tipo de referência a ação prática da Fúria Alecto sobre Amata esposa do rei Latino e sobre o rei dos rútulos Turno. Em um outro instante destes escritos há uma promessa de narrar com mais detalhes a fúria de Dido ao ver os troianos partirem, e junto com eles seu eternamente amado Eneias. Este adendo tem um lugar devido aqui neste capítulo e passaremos a explorar melhor esta especificidade.
Ao perceber de sua atalaia os navios troianos partindo e as praias vazias, Dido golpeia seu peito três ou quatro vezes com ódio e começa a puxar seus próprios cabelos loiros. Dido, tomada pela influência negativa das Fúrias começa a reclamar com o pai dos deuses Júpiter.
"Há deste homem escapar de mim Júpiter?" Grita Dido no ápice de sua impetuosidade. Ela continua a questionar consigo mesma como este estrangeiro foi até lá para zombar dela em seu próprio reino. Dido comanda seus homens para iniciar guerra contra os troianos, mas estes já estão longe.
Em um raro momento de lucidez Dido questiona suas próprias palavras: mas o que estou dizendo? onde estou? Que desvario me cega a esse ponto?
Dido infeliz sente o peso da sua desgraça, o fato consumado e imutável da perda do amor. Vê-lo partir sem nada poder fazer a não ser ranger os dentes e gritar. O amor transformado em fel pelo talante da ventura. O não amor logo vira-se como vinho em vinagre. O desejo de Dido é esquartejá-lo e lançar seu corpo insepulto nas ondas do mar. Matar todos seus camaradas troianos, e a seu filho Ascânio (absurdo!), bem, Dido tenciona ofertar o corpo do menino em um banquete, para servir como um prato excelente.
Novamente Dido questiona-se, tem um milhão de dúvidas e sentimentos confusos que se debatem dentro dela, jogando a alma e o coração um contra o outro, destruindo-a completamente: "Mas fazendo tudo isto a vitória estaria ao meu lado? Que importa? Quem vai morrer deve temer o que? Se pudesse, continua Dido, incendiaria imediatamente seu acampamento, colocaria fogo nos navios e de um golpe extinguiria o pai e o filho, essa raça maldita, e ao fim daria cabo da minha jubilosa vida.
Logo Dido invoca Juno, Hécate e as Fúrias, do mal vingadoras, para ouvir sua prece sombria e maligna. Em sua prece Dido ambiciona que Eneias seja derrotado e abatido no Lácio, que veja seu filho e seus companheiros de viagem mortos, que jamais goze de um reino e que prematuro pereça e insepulto seu corpo na areia se desfaça:

Regina e speculis ut primam albescere lucem
uidit et aequatis classem procedere uelis,
litoraque et uacuos sensit sine remige portus,
terque quaterque manu pectus percussa decorum
flauentisque abscissa comas ‚pro Iuppiter! ibit 
hic,‘ ait ‚et nostris inluserit aduena regnis?
Non arma expedient totaque ex urbe sequentur,
diripientque rates alii naualibus? ite,
ferte citi flammas, date tela, impellite remos!
Quid loquor? aut ubi sum? quae mentem insania mutat? 
Infelix Dido, nunc te facta impia tangunt?
Tum decuit, cum sceptra dabas. en dextra fidesque,
quem secum patrios aiunt portare penatis,
quem subiisse umeris confectum aetate parentem!
Non potui abreptum diuellere corpus et undis 
spargere? non socios, non ipsum absumere ferro
Ascanium patriisque epulandum ponere mensis?
Verum anceps pugnae fuerat fortuna. fuisset:
Quem metui moritura? faces in castra tulissem
implessemque foros flammis natumque patremque 
cum genere exstinxem, memet super ipsa dedissem.
Sol, qui terrarum flammis opera omnia lustras,
tuque harum interpres curarum et conscia Iuno,
nocturnisque Hecate triuiis ululata per urbes
et Dirae ultrices et di morientis Elissae, 
accipite haec, meritumque malis aduertite numen
et nostras audite preces. si tangere portus
infandum caput ac terris adnare necesse est,
et sic fata Iouis poscunt, hic terminus haeret,
at bello audacis populi uexatus et armis, 
finibus extorris, complexu auulsus Iuli
auxilium imploret uideatque indigna suorum
funera; nec, cum se sub leges pacis iniquae
tradiderit, regno aut optata luce fruatur,
sed cadat ante diem mediaque inhumatus harena. 
Haec precor, hanc uocem extremam cum sanguine fundo.
Tum uos, o Tyrii, stirpem et genus omne futurum
exercete odiis, cinerique haec mittite nostro
munera. nullus amor populis nec foedera sunto.

(Eneida - Livro IV: versos 586-624)

Já sabemos o infeliz resultado da frustração da rainha fenícia Dido. Sabemos também que uma coisa leva a outra. O medo traz a insegurança, o ciúmes, o egoísmo e estes logo tornam-se raiva, fúria, ódio. A ira desvariada de Aquiles fez ele abandonar o campo de batalha, como forma de se vingar do filho de Atreu por ter se apropriado de sua amada.
A inércia de Aquiles causou um ruído estrondoso em seu amado primo Patroclo, e este decide irresponsavelmente tomar as armas de Aquiles e lutar contra os troianos tomando a postura do grande herói. Patroclo acaba sendo morto por Hector em combate. Aquiles fica ainda mais furioso e decide entrar em combate singular com Hector. Aquiles mata Hector e amarra os pés do herói troiano à sua biga enquanto dá voltas pelas muralhas de Troia amaldiçoando a raça de Príamo.
Talvez nossos contemporâneos levem strictu sensu o sentido da palavra pedagogia. paidos sendo criança e gogía condução. Como se apenas as crianças e os estudantes tivessem o dever de serem educados. Para os antigos estamos sempre em processo de aprendizado e melhoramento espiritual, moral e cívico. Sempre há algo novo para se aprender, e neste sentido, seria bom que o dom da curiosidade, da vivacidade diante de uma nova descoberta, a alegria da descoberta tão comum nos pequenos estivesse como uma chama acesa dentro dos adultos, que por serem profissionais ou graduados pensam não ter de aprender mais nada.
E somos nós adultos que temos a obrigação de entender aquilo que nos move e que principalmente está fora do nosso controle, sendo a fúria desmedida um desses defeitos tão explorados pela literatura clássica. A raiva conduz invariavelmente ao erro. A perda da razão. Numa discussão não importa quem está certo quem está errado, mas se alguém grita ou levanta a voz primeiro, esta pessoa está errada.
O erro nem sempre é um crime capital. Mas muitas vezes o erro conduz ao crime. E então somos punidos por nossa própria falta de controle, somos punidos por deixarmos de lado nossa humanidade e cultuarmos num altar sagrado o orgulho, pai do ego e daquilo que existe de mais feio em todo ser vivo. Agir como um cão que ladra ao ver outro cão, como um leão que devora suas presas. Viver em sociedade requer responsabilidade e sobriedade acima de tudo.
Entender nossas fraquezas por meio de arte literária e, acima de tudo, aceitá-las como parte da nossa composição é um dos caminhos para evitar o erro. Evitar o exagero. A busca pelo poder e pelo conhecimento. O orgulho de ter e saber não são suficientes para frear os impulsos da cólera. E quantos absurdos não acontecem na nossa sociedade de hoje só porque alguém decidiu deixar se levar pelos instintos mais brutais?
Tomemos a lição dos estoicos e apliquemos estas teorias em nossas vidas. Prudência para que possamos avaliar com cuidado a arte, a vida e outros irmãos que estão ao nosso redor. Coragem para que possamos enfrentar as dificuldades da vida, as perdas que estão fora do nosso controle. Temperança, irmã da coragem para que possamos resistir às tentações daqueles ignorantes que tentam nos conduzir para o caminho da perversidade, resistir as provocações e as tentações do ego. Justiça para que não sejamos hipócritas ao ponto de julgar outrem sendo nós mesmos os caídos e corruptos.


C. H. Barbosa - As Fúrias ou A Ira 





Friday, 24 March 2017

Lavínia

Tratamos aqui neste capítulo de um tipo de relação muito comum em várias sociedades, o casamento como forma de construção de um poder social. Quando não há nenhuma relação afetiva entre o casal, quando estes mal conhecem um ao outro e, por dever social, devem formar um matrimônio para manter um patrimônio.
Um casamento de aparências onde aquele não ama esta e vice-versa, sendo provável que este casal nunca tenha se visto durante a vida, e, juntos, formam um par elegante e modelar para a sociedade circundante. É conveniente demonstrar para a sociedade que há uma união legal, amparada pelo desejo dos deuses, e no entanto manter apenas o simulacro desta relação.
Antes de refletir sobre estes aspectos conjugais na literatura clássica seria oportuno destruir um paradigma anacrônico. Muito frequentemente ouve-se nos corredores de universidades, em salas de aula e até em artigos acadêmicos sérios que Homero é machista. Que Virgílio é machista. Assim como Platão acreditava que a fantasia literária era prejudicial para o pleno desenvolvimento da Paideia, do cidadão moralmente elevado da Pólis, os hodiernos adquiriram este vício de criticar aquilo que não entendem, ou pior, jamais leram.
Dizer de forma séria que os autores clássicos são machistas é um anacronismo e uma falta de sensibilidade estética imperdoável. Isso só pode ser dito por aqueles que nunca leram sequer um verso da Odisseia ou da Eneida. Aqueles que se contentam com uma fortuna crítica tardia, desapegada de qualquer valor cultural real do que era a sociedade grega e romana de fato. 
Outros, ainda mais ignorantes do que estes, acusam os romanos de terem sido "homossexuais". Como eu posso aplicar conceitos criados no século XIX como machismo e homossexualidade numa obra e numa cultura que desconhecia estes termos? 
O recalque platônico é latente em muitos contemporâneos ansiosos por falar daquilo que nunca conheceram. Platão era um pensador que usava da teoria e do método como forma de atingir uma suprema verdade a respeito do homem, da moral, da sociedade e até de Deus. Platão escrevia de forma teatral, apesar de repugnar Homero. O poeta usa da ficção artística para que o leitor possa atingir a sua verdade. Em termos simplistas Platão usa da filosofia, da verdade para atingir a mentira, e Homero usa a mentira para atingir a verdade. 
Homero não é um cientista ou teórico que defende que as mulheres são seres inferiores. E como já foi dito, quem defende esta hipótese do machismo homérico nunca teve coração para ler a Ilíada, pois já parte do pressuposto que é impossível ler uma obra machista. Esse tipo de preconceito é oriundo da ignorância generalizada que perpetra os muros das academias desde a Atenas clássica. Criticar aquilo que não se conhece é um erro metodológico pueril. Em suma, Platão não leu corretamente os clássicos, pois já estava permeado de preconceitos. 
E eu não sei que tipo de pensamento crítico e socialmente construtivo é este que acaba num determinismo e numa superficialidade hedionda. Rotular com uma palavra ou um conceito um espectro magnânimo de relações históricas e poéticas. É moda dizer palavras chaves para classificar aquilo que não se entende: isto é machista. Aquilo é misógino. Este é homofóbico. Com estes rótulos simplificadores acreditam ter uma postura crítica e uma contribuição social. Como se chamar um criminoso de bandido transformasse a sociedade como uma mágica da fata Morgana.
Pensar com respeito a sociedade é uma atividade trabalhosa e que requer muita dedicação. A maioria contenta-se com ideias prontas advindas de formadores de opinião. Deixando estes novos platões ao lado, voltemos a tratar da relação conjugal na literatura clássica. Helena era casada com Menelau, rei de Esparta e acabou sendo raptada por Páris e levada para Troia. Mas quem acusa Homero geralmente assistiu a alguma adaptação ridícula da Ilíada para o cinema comercial. 
O nome da obra homérica é "Ilíada", o que significa mulher troiana. Helena deixa de ser espartana contra a sua vontade e torna-se uma ilíada. A filha de Tindareu é o centro das atenções na obra homérica. Em segundo lugar aparece a ilíada Briseida, raptada pelos mirmidões que acaba tendo uma relação com Aquiles, tema do Canto I da Ilíada. Uma relação de amor verdadeiro, que acaba por ser trágica, num mundo onde homens e mulheres devem cumprir com seus deveres. 
E o que a personagem Lavínia tem a ver com tudo isso? Lavínia não é uma personagem central na Eneida. Ela quase não fala e não aparece na obra, e, diferente de Helena ela não foi raptada por um estrangeiro. Lavínia é uma adolescente solteira que deve casar-se com um estrangeiro com a finalidade de fortalecer o patrimônio territorial de uma nação. 
De outro lado da moeda Eneias nunca amou Lavínia, e, se dependesse da vontade do anquisíada, ele casaria-se com seu grande amor, a rainha fenícia Dido. Só que o destino ou os fados tinham outros planos para o herói troiano. O amor por Dido não iria consolidar uma aliança militar forte o suficiente no Lácio. O casamento por aparências e por necessidades estritamente materialistas é então o tema da tragédia de Dido. Não basta um amor espiritual puro entre duas almas apaixonadas.
O deus Mercúrio já havia alertado Eneias do seu dever na Itália, como tratado no capítulo Elisa. Durante a catábase de Eneias, seu pai o revela que Lavínia será sua futura esposa, que juntos irão gerar um filho chamado Sílvio Albano, já na velhice de Eneias, e que este Sílvio Albano será educado para ser rei nas selvas espessas, e dará origem aos reis de Alba Longa:

siluius, Albanum nomen, tua postuma proles,
quem tibi longaeuo serum Lauinia coniunx
educet siluis regem regumque parentem,
unde genus Longa nostrum dominabitur Alba. 

(Eneida, Livro VI - v. 763-766)

Em um outro momento da narrativa, quando Lavínia estava queimando incensos nos altares junto com seu pai Latino, acontece um terrível presságio. De repente as chamas passaram a queimar os cabelos da jovem Lavínia, seus belos ornamentos, seu diadema de pedras preciosas e o fogo espalha pelos outros aposentos do templo. 
Aquela visão causou horror e espanto naqueles que presenciaram a cena. Para Lavínia era um presságio de fama e prestígio. Mas para o povo este agouro indicava muitos trabalhos e guerra.

Praetera, castis adolet dum altaria taedis
et iuxta genitorem adstat Lauinia uirgo,
uisa (nefas!) longis comprendere crinibus ignem
atque omnem ornatum flamma crepitante cremari
regalesque accensa comas, accensa coronam
insignem gemmis; tum fumida lumine fuluo
inuolui ac totis Vulcanum spargere tectis.
Id uero horrendum ac uisu mirabile ferri:
namque fore illustrem fama fatisque cabebant
ipsam, sed populo magnum portendere bellum.

(Eneida, Livro VII - v. 71-80)

Preocupado com aquele presságio, Latino promove uma consulta com seu pai adivinho, Fauno, na selva mais densa da região. Latino então oferece o sacrifício de cem ovelhas tenras com a intenção de ver o futuro. Fauno se deita sob as peles das ovelhas sacrificadas e dá o vaticínio para o filho. Fauno pede para Latino esquecer esta ideia de dar Lavínia para um marido latino, pois um genro estrangeiro irá levá-la, cujos filhos e netos irão submeter cem povos sob o império de leis rigorosas e sábias. Este império irá abranger todo o curso do sol, desde o oceano nascente até o poente. 

"Ne pete conubiis natam sociare Latinis;
o mea progenies, thalamis neu crede paratis;
externi uenient generi, qui sanguine nostrum
nomem in astra ferant quorumque a stirpe nepotes
omnia sub pedibus, qua Sol utrumque recurrens
aspicit Oceanum, uertique regique uidebunt".

(Eneida, Livro VII - v. 96-101)

Em capítulos futuros pretendo desdobrar a atuação das deusas na Eneida. O próximo capítulo irá ser sobre as Fúrias, Alecto, Tisífone e Megera. O seguinte irá abordar o diferente papel da deusa Vênus sob o herói troiano comparado com Atena  e Aquiles/Odisseu e no mês de junho, obviamente, tratarei de Juno. 
Por enquanto é sábio observar o cuidado de Virgílio no trato com as potências do destino, que, segundo Maquiavel, não podem ser ignoradas. Para Maquiavel o destino controla metade dos eventos ocorridos em nossas vidas, cabendo ao homem de virtude aceitar este poder ulterior que está além do seu ego, para, em momento propício concedido pela vida e pelo destino, aproveitar as oportunidades.
Eneias e Lavínia são personagens virtuosas e que no entanto não possuem nenhum poder contra a vontade dos deuses. A satúrnia Juno passara a odiar os troianos desde o famoso julgamento de Páris, cuja decisão de escolher Vênus como a mais bela entre as deusas decepcionara Juno. Desde então a satúrnia tem trabalhado com vigor para prejudicar todas as ações dos troianos e isto também está presente na Eneida.
Juno não se conforma com a chegada de Eneias ao Lácio. A esposa de Júpiter então percebe que seus poderes de nada valem contra os troianos e decide apelar para forças inferiores. É célebre a passagem em que Juno diz que já que no céu nada alcanço, recorro às potências do inferno. Uma vez que a deusa não pode dobrar o destino férreo, que dita a união entre Lavínia e Eneias, Juno decide ao menos retardar a ação de Eneias no Lácio e desgastar suas reservas de guerreiros.
O plano sombrio de Juno é fazer com que o casamento do troiano com a latina seja feito em bodas de sangue, e que o povo sofra o ônus dessa união indesejada pela deusa. Como madrinha das bodas, segundo Juno, terão a deusa da guerra Belona.
Juno diz que Eneias será outro Páris e que outra vez as chamas das bodas de Troia irá incendiar a cidade. Os romanos portavam uma tocha nos matrimônios que passou a simbolizar o próprio matrimônio. 
Assim, Juno desce até o inferno, furiosa, em busca das irmãs assustadoras, neste caso, Alecto infernal, que se delícia apenas com traições, crimes negros e guerras infinitas. Até Plutão detesta Alecto e suas irmãs, Tisífone e Megera esquivam-se dela:

Ast ego, magna Iouis coniunx, nil linquere inausum
quae potui infelix, quae memet in omnia uerti,
uincor ab Aenea. Quod si mea numina non sunt
magna satis, dubitem haud equidem implorare quod usquam est:
flectere si nequeo superos, Acheronta mouebo.
Non dabitur regnis, esto, prohibere Latinis,
atque immota manet Fatis Lauinia coniunx:
at trahere atque moras tantis licet addere rebus,
at licet amborum populos exscindere regum.
Hac gener atque socer coeant mercede suorum:
sanguine Troiano et Rutulo dotabere, uirgo,
et Bellona manet te pronuba. Nec face tantum
Cisseis praegans ignes enixa iugales;
quin idem Veneri partus suus et Paris alter
funestaeque iterum recidiua in Pergama taedae.
Haec ubi dicta dedit, terras horrenda petiuit;
luctificam Allecto dirarum ab sede dearum
infernisque ciet tenebris, cui tristia bella
iraeque insidiaeque et crimina noxia cordi.
Odit et ipse Pluton, odere sorores
Tartareae monstrum: (...)

(Eneida, Livro VII - v. 308-329)

Juno pede para a virgem da noite usar seus poderes de semear a discórdia até entre irmãos muito unidos para arrumar um jeito de desfazer este trato, este casamento de Eneias com Lavínia, e espalhar a guerra entre latinos, troianos e rútulos. 

"Hunc mihi da proprium, uirgo sata Nocte, laborem,
hanc operam, ne noster honos infractaue cedat
fama loco, neu conubiis ambire Latinum
Aeneadae possint Italosue obsidere fines.
Tu potes unanimos armare in proelia fratres
atque odiis uersare domos, tu uerbera tectis
funereasque inferre faces, tibi nomina mille, 
mille nocendi artes. Fecundum concute pectus, 
disice compositam pacem, sere crimina belli;
arma uelit poscatque simul rapiatque inuentus".

(Eneida, Livro VII - v. 331-340)

Alecto conhece artes mil e variadas de fazer mal. Então a virgem da noite vai até o belo Lácio e à morada dos laurentes, onde encontram-se o rei Latino e a rainha Amata. Alecto infiltra-se de mansinho no leito de Amata que já estava um pouco nervosa com a chegada dos troianos e o casamento prometido de Lavínia com o rei dos rútulos, Turno. 
Enquanto Amata queixava-se e gemia sozinha no quarto, Alecto usa seus poderes malignos para envenenar ainda mais a alma da rainha. O vírus da maldade penetra sem ser sentido em todos os fracos sentidos da rainha. Desse modo, inflamada pela influência malevolente de Alecto, Amata vai ter com Latino, e chora para o marido sobre as bodas futuras com o frígio Eneias.
Amata, inconformada, diz a Latino: "Senhor, vai dar Lavínia como esposa para este teucro sem pátria? Você não tem pena da própria filha nem piedade da pobre mãe? O pastor frígio com essas estratégias não entrou em Esparta e a bela filha de Leda roubou para levá-la até Troia? Teus juramentos e tua fé de nada valem? E a sua palavra empenhada com Turno?"
Amata ainda argumenta que se Lavínia deve casar-se com um estrangeiro, que Turno, por sua vez, também é estrangeiro, sendo ele descendente de Ínaco e Acrísio de Micenas. Contudo estes questionamentos e pedidos de Amata não surtiram nenhum efeito no já decidido rei Latino.

"Exsulibusne datur ducenda Lauinia Teucris,
o genitor, nec te miseret nataeque tuique?
Nec matris miseret, quam primo Aquilone relinquet
perfidus alta petens abducta uirgine praedo?
An non sic Phrygius penetrat Lacedaemona pastor
Ledaeamque Helenam Troianas uexit ad urbes?
Quid tua santa fides, quid cura antiqua tuorum
et consanguineo totiens data dextera Turno?
Si gener externa petitur de gente Latinis
idque sedet Faunique premunt te iussa parentis,
omnem equidem sceptris terram quae libera nostris
dissidet externam reor et sic dicere diuos.
Et Turno, si prima domus repetatur origo,
Inachus Acrisiusque patres mediaeque Mycenae".

(Eneida, Livro VII - v. 359-372)

Agora iremos dar um pulo até o Livro XII onde o plano de Juno já surtira alguns efeitos e onde começam os preparatórios para o duelo entre Eneias e Turno para decidir quem irá se casar com a princesa Lavínia. Amata, dominada pela influência de Alecto acaba com cometer suicídio levando a filha ao desespero. 
Como no Livro XII encerram-se muitos aspectos decisivos para a narrativa e o contexto da viagem de Eneias, prefiro deixar esta parte para um momento mais oportuno, contando que estou sendo meio redundante, uma vez que parto do pressuposto que o leitor já leu ou está lendo a Eneida. Por isso me acho muito repetitivo às vezes pois sei que o leitor esta a par do que estou dizendo. 
Concluindo esta breve empreitada digo que não acho fácil a leitura da Eneida. Estou lendo esta obra há praticamente seis meses e ainda não a terminei. Para fazer uma leitura que respeite toda a tradição e história desta obra não posso ler a Eneida como leio uma notícia de jornal um um post no Facebook. 
As vezes fico mais de quinze dias para ler um único Livro. Mas uma leitura estrutural, que vai considerar todos os pormenores e detalhes da obra, e que requerem atualização e pesquisa constante, uma vez que a obra não foi escrita em língua portuguesa, mas em latim. 
Antes de acusar um autor de machista, fascista, chauvinista ou quaisquer destes rótulos permeantes que são como vírus nas acadêmias é imprescindível a leitura, o resumo, a responsabilidade com um texto que atravessou centenas de anos para chegar até nós, e é fonte de deleite até hoje. Reduzir uma obra a um único aspecto, seja ele qual for, é um preconceito e uma limitação cognitiva. Uma imperdoável falta de sensibilidade poética para aqueles que estão acostumados a consumir textos doutrinantes e sabem falar muito, mas não aprenderem o sentido e a virtude da audição. 


Carlos Henrique Barbosa - Lavínia ou uma cidade chamada Roma



Thursday, 16 March 2017

Une Charogne

Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

Tout cela descendait, montait comme une vague
Ou s'élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.

Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.

Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.

Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché, 
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection, 
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Apres les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!

Charles Baudelaire - Une Charogne

Friday, 24 February 2017

Sibila

A Epopeia é um gênero literário composto em versos longos, rimados cujo conteúdo principal é apresentar modelos morais de comportamentos a serem seguidos. A Epopeia é o tipo de narração que exalta os grandes feitos de um povo. Segundo Aristóteles, a Epopeia é o gênero literário pautado pela imitação de homens de moral superior. 
Essas são as primeiras definições didáticas que se podem encontrar numa pesquisa superficial pela internet ou numa aula acadêmica de caráter doutrinante. A Epopeia não é um gênero literário para exaltar os grandes feitos de um povo ou nação. Seria absurdo considerar a análise aristotélica hermenêutica e filosoficamente: qual ou quais tipos de grandes feitos os argivos realizaram ao saquear a cidade vizinha de Troia, estuprar as ilíadas como o Neoptolemo fez com Andrômaca após o assassinato de Hector, roubar os tesouros dos troianos e reduzir sua cidade a cinzas? 
E quais foram os grandes feitos dos portugueses narrados na obra Os Lusíadas senão a conquista de outros povos orientais e a imposição do comércio europeu por intermédio de Vasco da Gama? Os grandes feitos dos portugueses foram, portanto, roubar, matar e escravizar outros povos? Queremos acreditar que com esta vasta fortuna crítica concernente aos clássicos, que isto não pode ser verdade.
Vivemos na era da superficialidade. As pessoas podem saber de tudo que lhes for de interesse, basta digitar um conjunto de palavras num navegador, e o sistema virtual responde, com algumas linhas ou duas páginas de texto. Isso não é suficiente, outrossim viveríamos numa geração de grandes gênios e transformadores da sociedade. A efemeridade das informações, seu caráter volátil as tornam produtos de consumo curtos e insignificantes, rapidamente digeridos e pedindo outro cardápio. 
Ter uma aula sobre literatura clássica, ou ler um texto na internet não torna os indivíduos especialistas no assunto. Hoje em dia qualquer um pode falar cheio de orgulho que leu tais e tantas e obras, sendo que na verdade apenas os resumos foram observados. O conteúdo acadêmico também não está livre da superficialidade, quando se tratam assuntos de extrema complexidade com a única proposta de avaliar os alunos com provas. 
Todos conhecem uma frase da Eneida, todos podem ler um resumo da obra e com isso ficarem satisfeitos tendo a posse de elementos desconexos de uma obra histórica de ampla complexidade. Conhecer um mito narrado na Eneida não significa que o aluno ou professor leram de fato a obra. Conhecer um mito da Eneida é o mesmo que observar uma única parte de uma pintura por uma foto. 
Em uma aula recente, um professor disse que a Sibila era uma bruxa dominada por potências infernais, e que pregava vaticínios, leituras sobre o futuro, além de anunciar o fim dos tempos. Isso pode ser verdade, se considerarmos a informação como didática, desapegada de qualquer senso crítico. Se for considerado a Sibila como bruxa demoníaca do mesmo modo que se considera a epopeia como a narração dos grandes feitos de um povo. (se considerarmos os deuses greco-romanos como demônios por extensão de sentido).
A Sibila pode ser uma bruxa, pode ser pagã e pode ser aliada do Demônio, dentro da recente cultura cristã, como se observa no hino Dies Irae, sobre o fim do mundo. Só que antes do cristianismo existia uma outra cultura, e, obviamente uma outra Sibila, da qual pretendo discorrer agora usando o Livro VI da Eneida.
Dentro do contexto da Eneida, a Sibila é simplesmente uma virgem sacerdotisa do Deus Apolo, cuja função da personagem dentro da obra é guiar Eneias pelos infernos. No Livro V, Eneias é aconselhado por seu pai Anquises em um sonho, que, guiado pela Sibila, deve descer até o Orco para procurar a alma do pai nos Campos Elísios para então saber qual o futuro do povo troiano no Lácio. 
Para chegar até os infernos, Eneias vai até a cidade de Cumas, na Campânia, onde o herói troiano deve encontrar o lago Averno, entrada dos infernos. Nos primeiros versos é narrado a visita de Eneias aos altos cumes onde fica o templo de Apolo e a gruta da horrorosa Sibila, reveladora do futuro:

At pius Aeneas arces, quibus altus Apollo
praesidet, horrendaeque procul secreta Sibyllae
antrum immane petit, magnum cui mentem animumque
Delius inspirat uates aperitque futura.

(Eneida, Livro VI - versos 9-12)

Leia-se "horrorosa" não no sentido físico, mas psicológico. A palavra latina "horrendaeque" poderia ser traduzida também como assustadora, pavorosa, horripilante, etc. A seguir Eneias e sua gente chegam ao bosque da Diana Trívia, ou Hécate, deusa infernal venerada nas encruzilhadas, local exato do templo de Apolo. Neste templo há várias esculturas que deleitam Eneias e sua gente, e numa delas está narrado o mito do escultor Dédalo, que para fugir dos domínios de Minos resolveu criar asas e voar até ao céu. Prodígio de Virgílio, uma escultura falando de um escultor. 
Eneias continua a observar com grande interesse as esculturas gravadas, onde está a história da traição de Pasífaa, esposa de Minos que se deitou com um touro, dando origem ao Minotauro. A frustração de Dédalo ao não conseguir esculpir a história do próprio filho Ícaro ao tentar voar para os céus com asas de cera. Contudo, Dédalo gravara o próprio fracasso de não conseguir esculpir um evento que se lhe tocava demais o coração. 
Eneias estava estupefato com a qualidade dessas esculturas, e, não fosse Acates retornar com a filha de Glauco, A Sibila, certamente ele teria ficado muito mais tempo apreciando estas maravilhosas obras, este espetáculo, como é descrito no referido capítulo.
A primeira coisa que a vate de Apolo diz a Eneias é que não é hora propícia para se entreter com arte, e que é dever do filho de Anquises imolar sete touros e sete ovelhas perfeitos, os mais belos disponíveis:

Deiphobe Glauci, fatur quae talia regi:
"Non hoc ista sibi tempus spectacula poscit;
nunc grege de intacto septem mactare iuuencos
praestiterit, totidem lectas more bidentes".

(Eneida, Livro VI - versos 36-39)

"Deiphobe", em português "Deífobe" significa a que afugenta o inimigo. Ao pé da caverna de Cumas, região ocidental da Hespéria ou Itália, uma enorme caverna se abre, com cem portas imensas e cem passagens subterrâneas, por onde a voz da virgem sacerdotisa de Apolo ecoa. O deus Apolo parece tomar posse do corpo da virgem, pois ela dizia, eis o deus! (deus, ecce, deus!), a aparência física da Sibila se transforma, seus cabelos ficam desgrenhados, os sons mais fundos, arquejante e o coração tomado por uma fúria incontrolável.
A Sibila, possuída pelo deus Apolo, diz a Eneias para adiantar os votos e as preces caso o contrário os portões não vão se abrir. Os troianos sentem o medo penetrar até em seus ossos:

ante fores subito non uultus, non color unus,
non comptae mansere comae; sed pectus anhelum,
et rabie fera corda tument; maiorque uideri
nec mortale sonans, afflata est numine quando
iam propiore dei. "Cessas in uota precesque,
Tros", ait, "Aenea? Cessas? Neque enim ante dehiscent
attonitae magna ora domus". Et talia fata
conticuit. Gelidus Teucris per dura cucurrit
ossa tremor funditque preces rex pectore ab imo.

(Eneida, Livro VI - versos 47-55)

Destarte, Eneias promete construir um templo de mármore para Diana e Apolo, além de um santuário para a Sibila. Então as portas do templo se abrem e a Sibila dá para Eneias um vaticínio sobre sua estadia na região do Lácio. A Sibila diz que a guerra vai tingir os rios Tibre e Xanto de sangue dos beligerantes. A Sibila assegura que a causa deste conflito, como sempre, é a mulher, neste caso Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata, prometida para o guerreiro rútulo Turno. Entretanto, o pai do rei Latino, Fauno, adverte o filho que Lavínia deve casar-se com um estrangeiro, no caso Eneias.
Nos próximos capítulos iremos nos debruçar sobre os aspectos da princesa Lavínia e da sua relação com os Fados, ou destino. Cumpre saber aqui que a princesa dos latinos não é outra Helena de Troia. A profecia da Sibila ao falar que a culpa como sempre é das mulheres, pode estar fazendo referência ao destino, comandado pelas Parcas e pela atuação direta da satúrnia Juno, deusa inimiga notória dos troianos.

(...) Teucris addita Iuno
usquam aberit, cum tu supplex in rebus egenis
quas gente Italum aut quas non oraueris urbes!
Causa mali tanti coniunx iterum hospita Teucris
externique iterum thalami.

(Eneida, Livro VI - versos 90-94)

Alfim, Eneias pede para Sibila lhe mostrar a entrada para as portas sagradas, e conduzi-lo até o pai Anquises. Neste pedido Eneias cita os heróis que foram até os infernos e retornaram: Orfeu tentando retirar a esposa dos Manes dos Infernos, Pólux alternando com o irmão Castor a estadia no inferno mil vezes, Teseu e Hércules.
É neste momento que a Sibila dá uma resposta bem conhecida para Eneias. A virgem de Apolo diz a Eneias que é muito fácil ir para o inferno, que a porta está aberta de dia e de noite. Mas voltar para a claridade é todo o trabalho mais árduo.

(...) "Sate sangiune diuum,
Tros Anchisiade, facilis descensus Auerno:
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed reuocare gradum superasque euadere ad auras,
hoc opus, hic labor est.

(Eneida, Livro VI - versos 125-129)

A Sibila então ensina para Eneias quais recursos deve usar para poder ir e voltar dos infernos em segurança. Primeiro o herói deve encontrar o ramo de folhas áureas escondido sob a copa de uma árvore densa e deve dedicar este ramo de ouro para Prosérpina, esposa de Plutão. Em seguida Eneias deve fazer o ritual funerário do companheiro Miseno e sacrificar animais de cor negra: quatro novilhos negros, uma ovelha para as fúrias e uma vaca virgem para Prosérpina. Obedecendo todas as etapas do procedimento funerário e do ritual macabro, Eneias sepulta o amigo Miseno. Logo duas pombas brancas, sinais da mãe de Eneias, Vênus, aparecem e o guiam pela floresta escura até ele encontrar o ramo de ouro.
A Sibila então conduz Eneias para a entrada dos infernos e, juntos, entram pelo negrume da noite (ibant obscuri sola sub nocte per umbram, literalmente, iam obscuros sob a noite solitária pela sombra).
Já no átrio dos infernos, nas fauces do Orco, a primeira coisa que eles veem é a moradia dos Remorsos, do esquálido Medo, Enfermidades de aspecto soturno, a Velhice ominosa e a Fome má conselheira. A Pobreza depravante, As Mazelas, visões de horror, mais a Morte, seguida do Sono, irmãos gêmeos, os insuportáveis Trabalhos e os Gozos proibidos da mente. A Guerra letal do outro lado, além das Fúrias e a negra Discórdia, a pentear os cabelos de cobras vivas.
Fora estes, outros monstros se encontram por lá: biformes Cilas, Briareu de cem braços, os indomáveis Centauros, a Hidra de Lerna mais a Quimera a lançar fogo pela boca abrasante, as terríveis Górgonas juntas das funestas Harpias, a alma do imenso Gerião de três corpos.
Eis que nos surge um caractere especial e muito estimado na obra de Virgílio: Eneias fica com medo, do mesmo modo que ficou assustado com a possessão divina da Sibila por Apolo. Em vão Eneias tenta sacar da espada e matar aqueles monstros, mas a Sibila o adverte de que são apenas espíritos imaterializados.

Aeneas strictamque aciem uenintibus offert,
et, ni docta comes tenues sine corpore uitas
admoneat uolitare caua sub imagine formae,
irruat et frustra ferro diuerberet umbras.

(Eneida, Livro VI - versos 291-294)

A partir daqui se inicia o caminho que leva até o rio Aqueronte e o barqueiro Caronte, condutor das almas até o reino dos mortos. O barqueiro Caronte é o guardião das águas do rio Aqueronte, com o corpo todo coberto de sujeira, a barba grisalha até o peito, sem nenhum tipo de tratamento. Seus olhos brilham em fulgores, sórdido manto pende de seus ombros, mal sustentado por um nó. O velho barqueiro segura um remo e acomoda o negro barco. Milhares de sombras, almas são procuradas por Caronte, mães, seus maridos, heróis de alma grande privados da vida, belos jovens, virgens solteiras e crianças.
Toda esta multidão de almas estão apinhadas na praia do inferno, pedindo com mãos suplicantes para serem transportadas por Caronte para a outra margem do rio. Admirado com aquela visão, Eneias questiona a Sibila: O que fazem todas estas almas desencarnadas nesta margem do rio? Qual o pedido das almas? Porque algumas são transportadas à outra margem e outras não?

(...) "O uirgo, quid uult concursus ad amnem?
Quidue petunt animae, uel quo discrimine ripas
hae linquunt, illae remis uada liuida uerrunt?

(Eneida, Livro VI - versos 318-320)

A Sibila explica brevemente para Eneias que esta multidão de almas desencarnadas rechaçadas pelo barqueiro Caronte não podem ser transportadas para a outra margem do rio porque seus corpos ficaram insepultos, sem túmulo, cadáveres expostos. É vedado ao barqueiro Caronte transportar este tipo de alma que os ossos ficaram insepultos. As almas desencarnadas dos insepultos ficam vagando durante cem anos sem parar ao redor desta margem da praia até que possa ser admitida sua entrada no reino dos mortos.
Esta é a terrível profecia dos primeiros versos da Ilíada de Homero, que os corpos dos heróis fiquem insepultos a mercê de cães carniceiros e aves de rapina. Além do dano corporal, a alma do morto ficaria vagando atormentada pelo mundo dos mortos, sem poder ser transportada em paz para a outra margem do rio. Vejamos essa fala da virgem de Apolo:

Haec omnis, quam cernis, inops inhumataque turba est;
portitor ille Charon; hi, quos uehit unda, sepulti.
Nec ripas datur horrendas et rauca fluenta
transportare prius quam sedibus ossa quierunt.
Centum errant annos uolitantque haec litora circum;
tum demum admissi stagna exoptata reuisunt.

(Eneida, Livro VI - versos 325-330)

De rosto triste, e privados das honras funerárias, estão os amigos de Eneias Leucáspide e Oronte, este chefe da esquadra troiana. Seus barcos afundaram nas águas. Ali perto também encontra a alma do piloto Palinuro. Eneias conversa com Palinuro e este lhe discorre sobre as causas de sua morte além de pedir para seu corpo ser sepultado apropriadamente. A Sibila promete a Palinuro que as devidas honras funéreas serão feitas.
Ao perceber Eneias e Sibila vagando por aquelas paragens, Caronte os questiona sobre o motivo de estarem ali e diz não poder transportar corpos com vida até o reino dos mortos. Caronte fala que já cometeu o erro de transportar Hércules, Pirítoo e Teseu. Hércules arrastou Plutão acorrentado e Pirítoo e Teseu tentaram raptar Prosérpina.
A maga Sibila acalma o barqueiro dizendo que Eneias piedoso não foi até lá sequestrar a esposa de Dite e que seu intento é apenas encontrar a alma desencarnada do pai Anquises. Então a maga Sibila lhe mostra o ramo áureo, acalmando o barqueiro e fazendo-o transportar os visitantes sem mais delongas até a outra margem do rio.
Na outra margem do rio, em terreno encharcado de lodo esverdeado eles encontram o cão Cérbero, abertas as três gargantas, uivando. Logo a maga Sibila lhe atira um pedaço de torta de mel, preparada anteriormente com um narcótico que coloca o cão para dormir.
Nesta região estão as crianças que perderam a vida precocemente. Os condenados por crimes. Minos, antigo rei de Creta, agora é um dos juízes do inferno, presidente do corpo de sombras. Minos convoca a todas as almas desencarnadas e as inquire sobre seus crimes cometidos em vida. Também estão ali os suicidas.
Não muito distante dali estão os Campos Lugentes ou campos da tristeza (lugere em latim significa "chorar"), esta é a região dos infernos onde estão os que morreram por desditoso amor. Como tratado com maiores detalhes no capítulo anterior, Elisa, nos Campos Lugentes estão as vítimas da peste do amor. Por lá Eneias viu as almas  de Prócris e Fedra, Erifile e mais Pasífaa e Evadne, seguidas da bela Laodâmia e de Ceneu, jovem que fora transformado em mulher. Entre estas sombras a vagar pelos Campos Lugentes, Eneias viu a alma da fenícia Dido com sua recente ferida.
Um pequeno adendo sobre estas almas seria fortuito. Prócris era ciumenta e seguiu secretamente o marido numa caçada. Por acidente Prócris foi morta pelo próprio marido. Fedra apaixonou-se pelo seu próprio enteado e não podendo suportar a situação acabou enforcando-se. Erifile levou à morte do próprio marido, Anfiarau, e foi assassinada pelo próprio filho, Alcméon. Pasífaa, fora raptada e teve amores secretos com um touro gerando o filho Minotauro. Evadne se suicidou inconformada com a morte do marido Cafaneu. Laodâmia que após ficar viúva pediu para ver a alma do amado marido por algumas horas, após as quais decidiu segui-lo até o reino dos mortos. Ceneu primeiro foi mulher, mas Netuno o transformou em um homem imbatível. Não podendo matar Ceneu, os Centauros o soterraram sob troncos de uma árvore. Após a morte Ceneu transformou-se novamente em mulher. Sobre a fenícia Dido leia o capítulo anterior, Elisa.
Adiante, Sibila e Eneias chegam ao campo onde estão as almas dos heróis. Tideu, pai de Diomedes, o forte Partenopeu mais o tácito Adrasto. Infinitos troianos mortos na guerra dos dez anos contra os argivos, são eles Glauco, Medonte, os três filhos de Antenor, Polibotes, Tersíloco e por último Ideu.
Os fantasmas cercaram Eneias no Inferno e tentam acompanhá-lo para inquirir sobre o motivo da sua descida até lá. O troiano Eneias então avista o espírito de Deífobo, filho de Príamo, ambas as mãos decepadas, o rosco riscado de cicatrizes, perdidas as duas orelhas e o nariz deformado e feio. Deífobo tentava esconder as feridas e com muito custo Eneias o identifica e, em tom amigável lhe fala: Deiphobe armipotens, genus alto a sanguine Teucri, quis tam crudeles optauit sumere poenas? (valoroso Deífobo, sangue precioso dos troianos, diga-me quem te marcou desta forma com tanta crueldade? v. 499-500).
Deífobo responde que o Destino fatal e a execrável maldade de Helena o deixaram assim mutilado. Bonita lembrança, diz Deífobo, sendo irônico com a situação: Sed me Fata mea et scelus exitiale Lacaenae his mersere malis; illa haec monumenta reliquit. (v. 511-512). Deífobo casa-se com Helena após a morte de Páris. Helena acabou dando sinal com uma tocha acesa na mão para os argivos invadirem os muros de Troia. Helena entorpeceu Deífobo e outros guerreiros troianos com drogas, e, quando estes estavam dormindo, retirou suas armas e deu sinal para Menelau.
Após muito chorar com as histórias do compatriota, a sacerdotisa de Apolo exorta Eneias a partir. Deífobo termina o seu discurso e dilui-se nas sombras.
Eles chegaram a um ponto extremo onde o caminho se divide. Para a direita está o palácio de Plutão rumo ao Elísio. Na esquerda as escuras paragens do Tártaro onde os maldosos recebem as penas pelos crimes cometidos em vida. Em frente ao caminho da esquerda se vê uma porta gigante de fortes colunas, de aço tão duro que nem as espadas dos deuses poderiam quebrá-las. Ao lado há uma torre onde a Fúria Tisífone se encontra, com um manto coberto de sangue. Esta Fúria é a responsável por punir os culpados. Tisífone nunca fecha os olhos, de noite e de dia sempre a escrutar, vigilante.
Ouve-se frequentes gemidos, açoites vibrando com raiva, barulhos de metal contra a superfície, barulho infernal de grilhões sendo arrastados. Eneias pergunta para a filha de Glauco quais tipos de crimes estes espíritos cometeram e quais as penas a eles impostas que provocam tantos lamentos e dores: Quae scelerum facies, o uirgo, effare; quibusue urguentur poenis? Quis tantus plangor ad auras? (v. 560-561).
A vate dos deuses responde Eneias que ninguém puro pode entrar nestes domínios de criminosos. Radamanto de Creta exerce o comando duríssimo deste lugar. Ele interroga os culpados e os pune, os malignos, obriga a confessar os delitos praticados em vida, com dolo, protelando o castigo até ao último momento da morte. Depois, Tisífone salta sobre os criminosos e os açoita severamente com seu chicote. No Tártaro se encontram os Titãs, seis filhos do Céu e da Terra, os Aloidas que revoltaram-se contra Júpiter e decidiram enfrentá-lo e Salmoneu, o mortal que com patadas e ranger de rodas tentava imitar os trovões e as tempestades de Júpiter. Júpiter fulmina Salmoneu por tentar imitá-lo.
Outros criminosos famosos também estão no Tártaro e a Sibila os aponta e os descreve para Eneias. Tício, gigante morto por Júpiter após tentar violar Latona. Os Lápitas, o rei Pirítoo e seu filho Exíone, este tentou violentar Juno, sofrendo severa punição de Júpiter. A mais velha das Fúrias, Alecto, está de guarda perto dali. Sibila termina dizendo que no Tártaro estão aqueles que nutriram ódio pelos próprios irmãos, aqueles que agrediram os pais, os que descuidaram dos clientes, os avarentos, quem morreu no adultério, os partidários da guerra contra seus próprios senhores, os revolucionários.
Sibila diz que não adianta Eneias querer saber todos os tipos de penalidades para cada crime. Uns rolam grandes penhascos, das rodas dos carros outros pendem. Teseu sentado se encontra e sentado estará sempre, todo infeliz. Teseu tentou violentar Helena. Com estes exemplos aprenda a acatar o mandado dos deuses, diz Sibila para Eneias.
Após esta horrenda jornada pelo Tártaro, Sibila e seu companheiro Teucro chegam até a morada das almas afortunadas e felizes, os Campos Elísios. Dos moradores desta região, alguns se exercitam em campos de grama ou se divertem de várias maneiras na areia dourada, outros em coro contornam, ao ritmo de belas cantigas. Lá está o sacerdote da Trácia, Orfeu, a arrastar a toga muito bela em consonância com a lira de sete cravelhas, Orfeu canta e toca o instrumento com palheta de marfim.

fortunatorum nemorum sedesque beatas.
Largior hic campos aether et lumine uestit
purpureo, solemque suum, sua sidera norunt.
Pars in gramineis exercent membra palaestris,
contendunt ludo et fulua luctantur harena;
pars pedibus plaudunt choreas et carmina dicunt.
Nec non Threicius longa cum ueste sacerdos
obloquitur numeris septem discrimina uocum,
iamque eadem digitis, iam pectine pulsat eburno.

(Eneida, Livro VI - v. 639-637)

A Sibila então questiona Museu sob o paradeiro da alma de Anquises, que estava logo por ali, com vivo interesse se encontrava a examinar umas almas num prado frondoso, almas destinadas à luz, entre as quais ele viu toda a linhagem futura de seus descendentes. Logo que Anquises percebe Eneias a caminhar pelo prado florido, tomado de júbilo, lhe estende as mãos, lágrimas compassivas a cair e fala ao filho emocionado que está muito contente de revê-lo e saber que conseguiu chegar até um lugar tão obscuro para ver o próprio pai. Anquises deseja apenas ouvir a voz do filho por um instante efêmero, gastar alguns minutos da infinita temporalidade em colóquios com o amado rebento.
Eneias tenta abraçar o espírito de Anquises três vezes, chorando por ver o pai e pela frustração de não conseguir tocá-lo novamente. Nisso, Eneias percebe um pequeno bosque no fundo do vale ameno, de árvores inquietas com a brisa leve, um sereno recolhimento que o rio Letes refrescado ao longe.
Ao redor das águas do rio Letes paira uma multidão de espíritos, como um enxame de abelhas.
Pasmo com aquela visão e ignorando o porque de tudo aquilo, Eneias pergunta o nome do rio e o motivo de tão grande conglomerado de gentes a povoar suas plácidas margens. Então o pai lhe responde que aquelas almas ao redor do rio Letes estão fadadas a reencarnar, e para tal precisam beber as claras águas do rio Letes para obterem o esquecimento total do que na vida anterior fizeram. Aqui nós temos um breve renascimento das filosofias platônica, órfica e pitagórica, sobre o mundo dos espíritos e a reencarnação das almas:

Tum pater Anchises: "Animae, quibus altera fato
corpora debentur, Lethai ad fluminis undam
securos latices et longa obliuia potant.

(Eneida, Livro VI, v. 713-715)

Atônito, Eneias pergunta ao pai se é crível que alguns espíritos queiram ainda voltar à terra para encarnarem-se em corpos materiais. Que insano desejo de a luz do dia rever, e reiniciar as canseiras da vida?

"O pater, anne aliquas ad caelum hinc ire putandum est
sublimes animas iterumque ad tarda reuerti corpora?
Quae lucis miseris tam dira cupido?"

(Eneida, Livro VI, v. 719-721)

O pai promete explicar para o filho e curá-lo de sua cegueira. Desde o início o santo espírito dá vida aos céus, a terra extensa, as campinas onduladas, o globo da lua resplandecente e as estrelas titânias. Inerente aos membros, a mente agira a matéria e se mistura ao conjunto das coisas, vai dizendo Anquises.
Em vida, os corpos temem, desejam, padecem de suplícios e gozos, cegos à luz, confinados nas trevas de suas clausuras materiais. Nem mesmo quando se despem do corpo físico perdem as aflições e os vícios deste corpo terreno.

Igneus est ollis uigor et caelestis origo
seminibus, quantum non noxia corpora tardant
terrenique hebetant artus moribundaque membra.
Hinc metuunt cupiuntque, dolent gaudentque, neque auras
discipiunt clausae tenebris et carcere caeco.
Quin et supremo cum lumine uita reliquit,
non tamen omne malum miseris nec funditus omnes
corporae excedunt pestes, penitusque necesse est
multa diu concreta modis inolescere miris

(Eneida, Livro VI - v. 730-738)

Anquises diz que o tempo nos infernos é necessário para limpar a alma destes vícios terrenos, expungir as manchas da alma para o espírito ficar limpo e tornar-se a etérea essência de origem, o fogo do início de tudo. Assim, passados mil anos, um deus convoca as almas às margens do rio Letes para que, esquecidas de tudo o que viveram, possam retornar à vida terrena.
A Sibila então leva Eneias até a multidão de almas prestes a reencarnar na vida terrena enquanto Anquises vai descrevendo os futuros perigos que o filho enfrentará no Lácio e a futura linhagem de Dárdano, incluindo Júlio César e Otaviano Augusto, os Irmãos Graco, os dois Cipiões, etc.
Ao final, Anquises conduz Eneias e a Sibila para a saída dos infernos e explica que há duas Portas do Sono, fazendo alusão ao Canto XIX da Odisseia. uma das portas é córnea de fácil passagem as sombras encontram os sonhos verdadeiros. A outra porta é de puro marfim, de que os Manes se servem, para enviar do céu aparências enganosas. Anquises conduz Eneias e a Sibila para a Porta Verdadeira e imediatamente após a saída, Eneias vai procurar seus companheiros e vai até Caieta ou Gaeta, cidade portuária do Lácio.


Carlos Henrique Barbosa - Sibila ou Uma viagem pelo mundo dos mortos. 


PS: Após reler este capítulo percebi algumas dezenas de erros ortográficos e a falta de um addendum sobre a catábase de Odisseu, que também desce aos infernos. Também vou trazer ad lucem um outro addendum a respeito do momento mais intenso da loucura de Dido, cada adendo vai estar presente no final de cada capítulo. Omnia vincit amor (Virgílio, Éclogas, Livro X, linha 69)