Tuesday 15 December 2015

Estação III

Próxima estação: Sé - Desembarque pelo lado esquerdo do trem. Eu me perguntei se a moça repete toda vez o nome das estações ou se é apenas uma gravação. Desembarque se puder na Praça da Sé. São exatamente 17h17 minutos e eu decidi fumar um no centro da cidade velha antes de ir trampar.
Uma par de bicho cruza comigo pedindo isqueiro, cigarro, fósforo, latinha, canal, becos, nomes.
Faço cara de mal, coloco as mãos no bolso e tento parecer cruel.
Próxima estação, Largo da Batata. Achei um ambiente muito pesado pra fumar um no centro da cidade. Cheio de power ranger pra cima e pra baixo. Não dá pra vacilar, ainda vou chegar no horário.
Aqui na Zona Oeste nada é padronizado. Ao dar um rolê pelo Largo da Batata percebo como Pinheiros mudou dos anos noventa pra cá. Pavimentaram algumas calçadas, iluminaram algumas ruas e vielas, mas o ambiente continua o mesmo. Bórdeis e botecos onde se acha pinga quase de graça. Ninguém quer perder oferta, e se o governo legaliza o álcool nenhum cidadão bota defeito.
Trabalho de motoboy numa pizzaria do Butantã do período das 19h30m às 3h30m da manhã, enquanto ainda tem gente fazendo pedido. Daqui a gente entrega em todo lugar e para os públicos. Da rua Bica de Pedra ao COPAM. Moradia estudantil, Vila Madalena, Pompéia, Jardins, Cidade Universitária, Pinheiros, Morumbi são alguns dos lugares que eu voou com a minha 150 cilindradas para entregar deliciosas pizzas.
Ao chegar há uma lista de entregas pra fazer. Mal tenho tempo de conversar com colegas, passo pela cozinha tomo uma água enquanto alguns enrolam e batem a massa, outros lavam pratos, ainda todos de boné, aventais, luvas, gorros, toucas, máscaras, levando pizzas ao forno, preparando molho. O cheiro estava ótimo com sempre. Mas hoje é um dia para ralar. Eu vou até o vestiário e coloco uma roupa que possa me proteger do frio. Recolho os bilhetes e já programo o GPS para me indicar a melhor ordem de entrega. E eu fico acima, correndo pra cima e pra baixo na marginal, ao lado de carretas em alta velocidade, ou mesmo quando o trânsito para e meu coração acelera junto com minha mão, que reza para Deus que eu possa voltar pra  casa. Queria ter estudado, feito um concurso pra não ficar ralando de bola de meia como motoboy.
As burguesas nem olham para mim. Sou um cara magro e fraco, elas gostam dos mais fortinhos. Não chamo atenção de nenhuma garota. Gosto de fazer entregas no Morumbi. Os clientes são ricos e 90% das vezes dão gorjetas altas, assim, sem mais nem menos. Já fiz mais de mil reais em gorjeta em única noite fazendo entregas no Morumbi. Aproveito e faço uns contatos extras. Se precisar de alguma coisa a mais fora a pizza pode ligar no meu celular. Eles sempre ligam, curiosos  quanto as novidades que tenho a oferecer, no meu trabalho diurno. Como a música do Tupac, "I got the weed and the coke, what do you need, what you want?" Como não sei inglês busquei a tradução no Google.
Gosto de trabalhar para os ricos. São leais e pagam sempre na hora. A classe média em geral nem pensa em dar gorjeta para entregador de pizza. Eles acham que realmente fazemos parte dos famigerados 10%. Um ou outro bom samaritano dá uns cinco reais quando tá de bom humor. Boa noite garoto, vai com cuidado. Obrigado senhor, fica na paz divina. É sempre assim.
A verdade é que eu arrisco minha vida nas ruas de São Paulo durante a noite porque eu tenho que trabalhar. Fica mal vagabundo que fica de dia na quebrada só ganhando o movimento e sendo ganhado pelos dedos de gesso. A verdade é que meu salário assinado em carteira é menor que um salário mínimo, quinhentos reais líquidos. O mais eu recebo por entrega. Quanto mais eu entrego, mais eu ganho. Não reclamo pois recebo gorjetas altas pelo menos duas vezes por semana. O que ganho com as entregas rápidas é um pouco mais da metade do meu salário líquido.
Dá pra pagar o aluguel, a conta de água e luz, a internet, o plano especial do celular, e quem sabe investir um dinheiro em outra empresa. Hoje é meu penúltimo dia de trabalho nessa pizzaria. Tenho uma entrega especial a fazer. Amanhã vai ser beber até cair com os colegas. Ou segunda-feira que a pizzaria não abre.
Sou eu novamente em um condomínio de luxo do Morumbi. Ninguém questiona a minha entrada, e quando digo que tem uma entrega para o apartamento número tal, o segurança nem olha na minha cara. Assistia a um vídeo pornô. Devia estar batendo uma escondido. Ele abriu a porta para eu pegar o elevador. Olhei pelo reflexo do celular que tipo de vídeo o segurança assistir. Era um travesti comendo outro.
Quando cheguei ao apartamento uma deusa oriental abriu a porta, coberta com uma fina camisola transparente. What do you want? Ela perguntou. Não entendi nada, só disse que era entrega de Pizza. We have ordered nothing. Please leave me alone or I will call the police. Polícia. Acho que em qualquer língua essa palavra significa a mesma coisa: problema.
Primeiro pensei nos mortos de fome da Polícia Federal. Vivem às custas de migalhas de tubarões maiores do que eles, os quais nenhum lava jato pode limpar. A corrupção é estrutural e no limite a própria polícia trabalha para o sistema. Um sonho passageiro que tive durante um milésimo de segundo. Será que ela é do FBI? Ridículo. Quem me pagou pra fazer isso é aliado das antigas, gente que ainda pode se confiar no mundo do crime. Ele não ia me botar numa cilada.
A essa altura eu já estava dentro do apartamento com o cano da arma dentro da boca da japonesa. Se você falar alguma coisa eu te mato. Ela falou alguma coisa como se estivesse fazendo sexo oral na arma. Você vai ficar em silêncio? Disse bem devagar enquanto retirava o cano da arma de sua boca. We don't have any cash in here. Cash, palavra universal que significa grana. Você fala português? I am sorry but I do not. Perhaps I can understand what you say very well.
Desgraça! O que será que ela disse? Onde está o Senhor _ _ _ _ ? He's coming from work. He's late because he went to joy his friends in some famous house, I don't know where. Eu uso a frase mais simples em inglês: What's your name? Ela olhou pra mim e disse I am Suzanne Akira, CEO of Western Oil Corporation. And you? Ela parece muito fria. Está esperando um momento em que eu possa vacilar. Perguntou quem sou eu. Eu sou o perigoso coletor de almas. Sou um mensageiro como o deus Hermes. Pensei, para não perder a atenção e o foco no porque eu estou aqui.
Ainda há pouco ela deixou a perna aberta de propósito, enquanto tentávamos conversar nos sofás de couro preto. Ela abaixou para pegar um lenço e deixou a aba da camisola cair, levantou o corpo com o seio direito à mostra, um mamilo duro e excitado, fez de conta que nem percebeu o desleixo, secou a maquiagem perto dos olhos, que estavam manchadas de lágrimas. Acho que nunca vi um seio tão belo em toda minha vida. Tentei não encarar e não ficar próximo. Peguei uma bebida para nós.
Quando voltei do mini-bar com as bebidas na mão e gelo, ela já havia arrumado a alça da camisola. Are you going to kill my husband? Kill, isso me lembra o filme do Tarantino, onde o sangue escorria a solto.
No kill. Only love. Ela riu e deu um belo gole no Gim. Você é japonesa? Ela disse que meio japonesa meio americana. Isso eu pude entender. Half american, half japanese. Ela sabe que estou armado, que provavelmente vou dar um tiro na cara do marido dela, mas mesmo assim ela se insinua como uma cobra, seus movimentos são sorrateiros, seduzem meu olhar e faz com que eu me pergunte que tipo de tesão é esse. Tesão pela morte. Só que eu não quero morder a maça.
Meu pau ficou duro e grosso, mas eu bebi um Conhaque e outro e outro e logo fiquei calmo. Não posso transar com ela. É a cilada perfeita para ela pegar minha arma e dar um tiro em mim. Ou ainda para me acusar de tentativa de roubo, estupro, homicídio e uma pena perpétua na cadeia. Eu conheço bem os segredos de Mefistófeles.
Como sempre ando com substâncias narcóticas, um comprimido de Diazepam veio a calhar. Coloquei no suco com uma leve pitada de Vodka. Ela apagou em alguns minutos. Peguei ela no colo como se fosse minha irmã, e coloquei ela cuidadosamente na gigantesca cama de casal rosa. Tapei seus ouvidos com silenciadores que estavam na cabeceira, junto com um tapa-olhos. Deixei ela coberta por um edredom verde cheio de listras que estava tão cheiroso que tive vontade de deitar.
Não o fiz. Dei um beijo na testa dessa agradável pessoa, apaguei a luz do quarto saí. deixei ela a roncar. Apaguei todas as luzes do apartamento e me perguntei se o segurança não notou que até agora minha entrega está em andamento.
Coloco o silenciador na arma enquanto aprecio a beleza de um piano de cauda preto. Imaginei aquela musa japonesa tocando alguma obra de Chopin. É o único músico que eu ouvi falar que toca piano. Não sei nada disso. Ouço um ruído na porta. Um cartão magnético está sendo passado do lado de fora.
Fico escondido atrás da cortina. Ele entra e fecha a porta. Acende a luz e joga o casaco no sofá de couro preto. Pega uma bebida, tira a gravata e o sapato, coça o saco e a bunda, e senta no sofá de couro preto. Eu apareço entre as cortinas. Com a arma apontada na direção dele. Ele deixa cair o copo de uísque no tapete persa. Não chega a ser um problema para a vizinhança. Três tiros na cabeça, dois no tórax e um no estômago.
Não deveria ter parado para pensar. Enquanto trocava de roupa, incinerava as roupas de motoboy no enorme forno holandês da cozinha. O disfarce estava perfeito e eu iria até sair com o carro do bacana. Mas agora tenho uma outra preocupação. Se a polícia chegar lá e achar o corpo e ela dormindo certamente vão partir de pressupostos machistas.
Decidi não deixar que isso acontecesse. O que aconteceu com o Senhor _ _ _ _ foi apenas um acerto de negócios. Não tenho nada contra a senhora Akira. Saio no corredor e pego o elevador, com ela no meu colo, já com blusa por cima da camisola. Quando chego no quarto andar, começo a gritar pedindo ajuda. Chega um funcionário de longe eu digo que estou no quarto tal, que ela sumiu e eu fui procurar ela no condomínio e quando a encontrei aqui no quarto andar ela desmaiou surpresa.
Fiz cara de coitado e o funcionário achou que eu fosse um corno chifrudo sem vergonha. Ficou com pena de mim e ajudou a carregar ela até o andar térreo. De lá chamaram uma ambulância, na qual eu entrei, acompanhado com ela e dizendo para os médicos que era o marido. A enfermeira segurou minha mãe, que começava a suar um pouco. Eu amo essa mulher. Pode ficar tranquilo senhor, não é nada de mais. Heróis. Muitas pessoas me viram como herói. Acho que é essa calça de quarenta mil dólares.
Deram glicose pra ela e em poucos minutos ela acordou. Já estávamos em outro mundo. Saímos do hospital e fomos tomar uma cerveja no bar. Conversamos até o raiar do dia. Ela sabia o que eu tinha feito e parecia feliz com isso. Depois que fui embora parei para me perguntar se não fora ela a verdadeira contratante desse serviço. Afinal de contas, negócios  são negócios. Com a morte do marido ela passa a controlar parte das empresas dele no Brasil. Ou eu andei assistindo muito novela das oito no horário nobre.
Durante o dia eu sou um gatinho que trabalha dentro do próprio apartamento. De noite eu sou um quebrado que trabalhava de entregador de pizza. Mas nem todo trabalho é pra sempre. As câmeras me filmaram? Claro que não. Essa foi a primeira parte do plano. Desligar todas as câmeras do quadrante que envolveu minha ação. E foram muitas quadras. Quando se trabalha sério sempre tem emprego. Pra não dar na cara apareci no meu último dia de trabalho na pizzaria, e para minha sorte tive uma entrega no mesmo prédio onde saiu no jornal que um cara se matou. Meu último dia de trabalho porque às 23h40m tenho que pegar meu voo para a Capital do Brasil. Ser invisível aos olhos da lei não é fácil. Vou arrumar outro serviço. Mas hoje estou de férias.

Crônica improvisada.

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