Monday 21 December 2015

Estação VI

Próxima estação - Luz - Desembarque pelo lado esquerdo do trem - Largo Treze. Rua Direita. Viaduto do Chá. Estação da Luz. Praça da Sé. Galeria do Rock. E o velho Bexiga. Ontem sonhei que estava tocando uma peça de Chopin no piano que fica na Estação do Metrô. Ela chegou cheia de maquiagem, tirou a roupa e ficou sentada na minha frente. Deve ter sido o filme de ontem. A cerveja de ontem.
Minha namorada começou a perguntar onde eu trabalho. Onde eu me formei. Como é notório de todos sou formado na escola das ruas. Minha tia não era tão boa como minha mãe. Ela me deixava passando fome de propósito para que eu fosse obrigado a roubar.
Essa tia, que me criou quando minha criadora desencarnou, era eivada de vícios alcoolicos e da raiva. Não passe fome. Roube. Quem eu seria se não fosse essa adorável tia? Com certeza um cidadão honesto que trabalha duro para ganhar o próprio pão.
Os meninos maiores sempre são mais folgados. Tiram você o tempo todo e na briga começam ganhando. Eu tive que tomar muito soco na cara, chute no estômago e pancada para chegar até hoje. Já era para estar morto. Deus que ama a todos sem distinção de caráter ainda não clamou por minha alma.
Minha namorada fez perguntas sobre onde eu me formei. Em que lugar exatamente eu trabalho. Vagabundo não pode dormir no ponto, então eu tive que improvisar um escritório de alto nível na Avenida Paulista. Contratei uns temporários para os dias que ela vai me pegar no "trabalho"
De resto, não aproveito esse escritório para nenhum negócio pessoal. Linhas telefônicas não são confiáveis, isso todo mundo já sabia antes do senhor exilado na Rússia, redes de navegação muito menos. Servem apenas para produzir centenas de provas contra você.
Cerqueira & Fibonacci Advogados. Eles foram os primeiros a dar conselhos sobre como investir melhor meu dinheiro: dando boa parte para eles. Como eu ando preparado para tudo sei que qualquer dia posso ser preso. O Senhor Cerqueira é respeitado no mercado do direito. Anda de Lamborghini, só come em restaurante cinco estrelas, faz  compras na Europa, tem um barco com o nome de sua namorada de 17 anos, "Lisa" com heliporto e o caralho a mais.
O Senhor Cerqueira tem uma cicatriz no lado direito da bochecha. Cada um fala uma coisa sobre essa cicatriz, eu mesmo não me importo e acredito na versão dele. Apesar de estar com a idade do Silvio Santos o líder do escritório de advocacia já tem troféus por defender caras do Mensalão, da Lava Jato, e de tantos outros esquemas de corrupção.
Fibonacci é a ex-esposa do Senhor Cerqueira. Uma loira com os peitos cheios de silicone, bunda, perna, vive na Itália fazendo cirurgia plástica. Ela tem apenas quarenta anos e o Senhor Cerqueira terminou com ela recentemente. Ficou apaixonado por uma "brilhante e severa estudante de direito".
O casal Cerqueira e Fibonacci casaram há mais de vinte anos. Na época o velho devia ter uns sessenta e ela uns vinte. Quando achou uma mais nova, a lei da oferta e da procura provou-se concreta.
Mandar dinheiro para Suíça. Comprar uma faculdade. Investir na campanha do Deputado Federal _ _ _ _ _ _ _ _ _ _  _ _  _ _ _ _, comprar apoio da facção dos magistrados, eleger um Senador da República. Investir em aliados políticos é chato e os advogados recebem meio milhão por mês não é a toa. E malandro tá ciente que não se brinca com essa raça. Ou eles te fodem e te afundam até o pescoço. Entretanto, são os melhores aliados políticos.
A facção dos magistrados é um grupo de juízes que são indiretamente subornados pelos negócios do cartel dos advogados. Pelo menos eu vejo assim, o direito como mais uma empresa econômica, sendo o seu fim o lucro não a justiça. Pagar pessoas para fazer a burocracia, emendar os problemas. Esse é o meu estilo de jogo. E eu jogo pesado no mercado.
Quando ninguém mais sabe quem você é, ou seja, seu golpe contra o sistema foi tão elaborado desde os primórdios da infância a ponto de exterminar as brechas e impossibilitar qualquer tipo de provas.
E não é tão mágico como o cinema. Sem ligações. Sem internet. Sem papel escrito. Sem rosto. Sem provas. Anônimo.
É garantida a liberdade de expressão mas é vedado o anonimato. Qual? Perguntou surpresa minha namorada. Universidade de Presbiterianos. Nunca ouvi falar. Era uma boa faculdade, foi fundada na década de cinquenta e depois foi anexada a um grupo maior de ensino. Como sabia que ela ia pesquisar na internet, criei uma página falsa para manter as aparências. Pedi a uns amigos hackers para fazer o trabalho. Hoje em dia no mundo do crime tem que ter todo tipo de conexão e parceria. Workshop eles dizem.
Eu cheguei na quebrada vestindo o uniforme azul e amarelo dos Correios. Com a bolsa azul cheia de correspondências ao lado. De fato eu fiz umas entregas reais. O verdadeiro carteiro está amarrado e anestesiado na van. Boa tarde senhora. Correspondência pra fulano de tal. A senhora poderia assinar aqui e colocar o número d RG por favor. Por extenso? Sim senhora. Cade o Hermes? Ele ficou gripado e deixaram ele de cama. O dia de folga é na segunda né? Ela riu achando que o real carteiro tivesse enchido a cara no domingo. Eu ri de volta e fiz alguma piada só para não perder muito tempo.
Contas para pagar. Mala direta. Contas de perder a conta. As pessoas não mandam mais cartas para as outras. Você está contando o número das casas, separando o lado par do lado impar, do maior para o menor, ou vice-versa. Olha o Correio! É como se tivesse trabalhado a vida inteira com isso. É bom ser simpático e trabalhar com as pessoas. Não deve ser legal fazer esse rolê todo dia pra ganhar uma merreca do estado.
Próxima Estação - Círculo: vestíbulo VII - Giro 1 - Viagem sem volta. Eu ficaria mais adequado no Vestíbulo VIII nas valas 1, 5, 6, 7, 8, 10, sendo os números: rufiões, traficantes, hipócritas, ladrões, maus-conselheiros e falsários respectivamente na ordem das valas. Ah! Como é dura a tarefa de narrar, essa selva rude e forte, que volve o medo à mente que a imagina. No meio do meu caminho tinha uma pedra. No meio da minha vida, no meio dos meus olhos, no meio do meu âmago.  A arma estava numa caixa de Correios amarela e azul, como a camisa da seleção, perto da casa onde eu iria terminar o dia de entregas.
 Uma caixa que foi entregue por uma adolescente vestida de rosa. Ontem.  Olá tudo bem com você? Seu pai está? Vou chamar ele. Papai! Detesto fazer esse tipo de coisa com criança por perto. No meio do caminho de nossas vidas fui me encontrar em uma selva escura. Tic-Tac. Com certeza eu não inventei esse poema. Um outro menino, de uns dezesseis anos mais ou menos estava sentado numa cadeira de metal branca, com o olhar perdido e a cabeça pendendo para a esquerda. Usava uma bermuda branca toda manchada de água sanitária. Olá qual o seu nome. Ele não respondeu. Talvez estivesse chapado. Talvez fosse alguma coisa mais séria.
Meu filho sofre de uma doença rara. Chegou um homem branco, alto, barbudo, com a voz rouca e tremendo. Ele perdeu a fala e a consciência quando ainda nem tinha dez anos. Minha mulher morreu de desgosto. Agora estou desempregado e com três crianças para criar. Como é o mais velho eu ainda coloco ele pra pegar latinha. Mas ele só quer saber da latinha pra fumar pedra. Abaixei a cabeça enquanto minha mão direita suava frio no cabo da pistola. Deixei a mão escorregar e fechei a caixa com a arma, deixando minhas mãos à mostra para parecer inofensivo para todos. O senhor tem um gole de água? Preciso de água para pensar no que fazer. Deus que sede!
Enquanto pegava água o pai tentava fazer um carinho na cabeça do menino, enquanto olhava pra mim cheio de suspeitas. Garrafas de corote e pedra noventa espalhadas pelo chão. Pacotes de miojo e bitucas de cigarro. Um canudo em cima de um espelho na mesa. Revista pornográfica. Meus olhos de rapina percorrem aquele quarto estreito. Lá fora,  o menino grunhiu, tentou bater no pai e começou a soluçar. Para com isso se não eu te arrebento moleque. Vai pro seu quarto vagabundo doente de merda. Deu um chute na bunda do menino e ele ia correndo trombando nos poucos itens de cozinha que estavam na pequena casa. Seu olhar era a esplêndida fúria. Evitei enquanto observa outros detalhes sórdidos naquele apartamento. Posso ir ao banheiro?
Ele coçou a cabeça e já estava quase chorando. Fui andando vendo os dois pequenos quartos da casa. Ali  deve ser o quarto do menino mais velho. Empurrei a porta para ver um quarto mais bagunçado que o mundo.
Quando se está no inferno todo tipo de coisa acontece. Recebi uma mensagem com título e garantia de ser problema. Quem é Carlota? Espero que você apareça essa noite para jantar. Beijos. Ela não escreveu mais nada. Nem um emoticon. Uma figurinha, um meme, qualquer coisa. Mancha de sangue no lençol encoberta por sabão em pó de má qualidade. Como explicar que uma enfermeira trabalha pra mim? Estou começando a ficar com a corda no pescoço de tantas mentiras. Uma hora a casa cai.
Um livro desses publicados por editoras baratas estava logo abaixo do colchão. Peguei a edição para ver. Era um livro preto com um aviso bem grande em vermelho na capa: se você tem algum tipo de paranoia não leia este livro. Pode lhe causar perturbações de ordem moral e espiritual. Será que nem os autores medem consequências para vender hoje em dia? Não recomendado para menores de 18 anos. Mas é claro que eu ia ser o primeiro a querer ler esse livro, se tivesse catorze ou quinze anos.
Intrigas. Paixões. Revelações. Dúvidas. Tem críticas dos jornais mais respeitados do país. Quanto lixo distribuído pelo mercado.
Particularmente não tive nenhum interesse em ler esse livro. Como nunca ouvi falar do autor, nem perdi tempo. Só leio autores com referência, de preferência os já consagrados pela historia. Infelizmente não tenho tempo para ler qualquer porcaria que é publicada.
Pai nosso que estai no céu. Santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita...O Pai velho estava rezando baixinho. Expiando que tipo de culpa? Espreita o meu instinto selvagem. Na floresta não vou pegar na mão de Virgílio. Vou até o inferno para beijar Beatriz. Minha namorada quer saber quem é Carlota. Não posso responder agora.
Desculpe moço. Tenho que assinar alguma coisa? Sim, com o seu sangue. Ele é muito forte. Belo bafo de onça. Deve estar na bebedeira desde cedo.
Uma notícia sobre violência e abuso passava no jornal. Eu não estava ouvindo mais, mas foi como um bálsamo a aliviar minhas dores, um luz que permeia a vida de qualquer bandido: intuição. O menino parou de falar ainda criança. Tem aversão ao pai e não suporta a presença dele. Em qualquer outra situação eu teria evitado. Por respeito as crianças. Agora precisava agir rápido. Porque diabos eu tenho de medir as consequências do que faço? Que inferno! Não quero diluir a vida desses meninos à um quadro do terror. Ver o próprio pai morrer com um tiro na cara deve ser difícil de esquecer. Deixo o celular no silencioso.
O velho rezava, confessava obscuramente seus pecados mais íntimos para mim. Um animal sabe reconhecer outro tipo de animal. Dei uns trocados para os meninos comprarem coisas no mercado. O outro havia ido para o quarto e fugido pela janela. Foi a conclusão que eu tirei pela observação minuciosa do quarto. Os outros meninos menores saíram correndo pela porta, brincando. Ofereci um pouco de bebida para o monstro. Fiz de contas que eu era um amigo do peito, uma pessoa que já sofreu e não superou as dores, que bebe todo dia, inventei que espancava minha esposa e tinha desejos estranhos. Isca para peixe, fingindo que entendia a dor dele até esperar o momento certo de fazer a sugestão. Eu fui dando corda pra ele, como meu avó costumava dar corda para suas marionetes. Já era lá pelas tantas e o titiriteiro entendia os desígnios da sua personagem.
O que eu acho mais admirável em todas as pessoas más é que elas tem a mente fraca. É fácil entrar na mente de um vacilão. E quanto pior em caráter for a vítima, maior minha satisfação. Eu gosto de matar esses traficantes que ficam andando pela quebrada de carro rebaixado com som alto, intimidando a comunidade. Eu gosto de atirar na boca desses bandidos de esquina que vivem se achando só porque tem uma arma na cintura.
Os valentões que andam armados e gostam de intimidar outros cidadãos. Vacilões de modo geral, cobras cheias de veneno e sedentas pela maça. Coloquei a mão na bolsa e não achei a carta para o velho. Na caixa tinha uma selo talhado em ouro escrito Pandora. Eu coloco a mão na bolsa e pego um cigarro. O senhor tem isqueiro? Sinto muito, posso fumar aqui?
Você não é dos Correios. E você não é um pai. Dois tiros na cabeça, dois no peito e um no saco. A cobra saiu rastejando pela porta. Olhei e vi o menino mais velho com um rosto de felicidade. Mandei ele ir visitar seu pai lá na terra de Dante. Desagradou-me demasiado o sadismo cínico com o que aquele menino me olhou. Monteiro Lobato me ensinou quando eu era criança que não se leva Cobra ferida para tratar em casa.
Próxima Estação - Faria Lima - Desembarque pelo lado direito do trem. Táxi, por favor leve-me até o alto de pinheiros o mais rápido que o senhor puder. Eu pago o triplo do taxímetro. Ele foi relativamente rápido. Até eu começar a contar notas de cem e ver seus olhos crescerem pelo retrovisor. Trezentos reais pela corrida. Obrigado senhor, tenha um ótimo final de ano.
Oi querida. O que houve? Quem é Carlota? Carlota é uma das enfermeiras que trabalham para a Tia Margarida. O que mais? O que mais o que? Seu ciúmes? Detesto essas discussões idiotas. Pensei enquanto a discussão ia ganhando massa, forma, volume, cores e espirito. Amor o caralho! Vai pra lá não me chama de amor! Essa vagabunda é a sua amante não é? Confessa seu vagabundo! Se eu me confessar você nunca mais vai olhar na minha cara. Eu sou vagabundo, mas não desse tipo. Eu já te falei amor, não rolou nada entre eu e ela. Vem aqui. Você é a mulher da minha vida.
Eu te odeio. Saiu quebrando pratos e copos. Quer que eu vá embora? Dois passos para fora da porta, após uma longa pausa tipo Haneke, ela soluçou um "não" que me seguiu como uma mão macia e me convidou gentilmente a voltar. Você está nervosa. Imbecil! Claro que ela está nervosa! Quando a mulher está brava e você fala idiotices, redundâncias ela fica ainda mais feroz. Mas agora não dá pra concentar... Melhor a gente se falar depois que..EU NÃO ESTOU NERVOSA PORRA. Gritou na minha orelha. Eu ameacei rir e ela percebeu, mas foi inevitável. Nessa época do mês ela fica sempre assim. Desculpa amor e comecei a gargalhar. Ela começou a me bater na cabeça, na barriga e eu rindo, rindo sem parar. Ela olhou nos meus olhos bem sério e perguntou: Quem tipo de pessoa você é? Se brincar comigo eu te mato. Encarei com frieza o olhar frustrado dela e desatei a rir logo em seguida, ela também e se abraçamos. "Quem" tipo de pessoa? Rimos ainda um pouco mais Ela disse que me amava. Pediu perdão pela insegurança e disse que entende eu ser uma pessoa de negócios.
Na noite anterior eu tinha ido tomar um chá com seu Zé. Ela saiu com as amigas e voltou só de madrugada. Aproveitei a noite para discutir negócios com o sogro, que mostrou ser muito inteligente e hábil com números. Se não fosse ilegal iria pedir para ele administrar meus negócios. Disse que a vida não estava fácil pra ninguém. Acanhado e com medo pediu um mísero empréstimo de vinte mil reais. Eu disse ser possível mas antes deveria conversar com meus sócios, O Senhor Cerqueira e a divorciada Fibonacci, para ele nomes fictícios de gestores de negócios. Não quero que seu Zé saiba que eu estou envolvido com advogados.
Hoje, pouco depois de pintar mais um quadro de brutalidade, liberei via celular a quantia de cinquenta mil para o seu Zé, livre de impostos. O dinheiro foi emprestado legalmente no nome de um dos meus Laranjas. Como pode ser um rapaz tão jovem e bem sucedido? A malícia dessa pergunta levou às trevas sua questionadora. Era o almoço de final de ano, e uma prima de terceiro grau da minha namorada estava morrendo de inveja dela.
Frequentemente fazia comentários críticos e ácidos a respeito do que minha namorada dizia, vestia ou deixava de fazer. Foi indelicada e mau educada mais de uma vez na mesa. Fiquei nervoso e fui fumar um cigarro na varanda. Seu Zé sabia que eu tava puto. Agora só fumo cigarros quando estou com muita raiva. A prima dela foi atrás.
Sua língua de cobra tentou me cortar e chicotear várias vezes. Filho de quem? Veio da onde meu filho? Que rapaz bonito e solteiro dando mole. Não estou dando mole. Vim fumar um cigarro. Você é muito lindo. É muito bonito ver um rapaz tão empenhado e trabalhador bem sucedido logo cedo na vida. E tudo legalmente. Disse com ironia.
Não poderia matar ela na noite seguinte. Então esperei e prometi que no máximo em um ano iria elimina-la. A sorte veio antes. Ela bateu o carro num poste. A perícia concluiu que ela estava muito bêbada. Senhor Vanzetti. Senhor Vanzetti? Seu talão de cheques. O gerente do banco entregando pra mim. Em breve quero comprar um banco pra mim. Só pra mim. Agora tenho que descer as escadas e ir até a Capital. Alô?


Crônica improvisada

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