Thursday 17 December 2015

Estação IV

Próxima estação: Paulista - Desembarque pelo lado direito do trem. Dia 24 de Dezembro costuma trazer aquela lembrança cheia de nuvens cinzas. Acordei cedo, escovei os dentes, olhei as mensagens e ligações no celular e me preparei para andar.
Os raios solares vão me encontrar em breve. Passo numa padaria e como um misto-quente com pingado. Como essas gorduras que vendem na rua são deliciosas. Passo na banca de jornal e compro um jornal. Não gosto de ficar no metrô olhando para a cara indiferente dos outros.
As notícias são as mesmas de ontem. Crise política, falta de amor, desassossego da alma, obsessões compulsivas, salsas vienenses e críticas de filmes e livros. Dou uma olhada no caderno de esportes.
Quando o jovem maquinista do trem anuncia que chegamos à Avenida Paulista. Eu já passei por aqui antes. Poderia ir direto pela rua Consolação mas meu inconsciente achou satisfatório uma caminhada pela Avenida Angélica.
Quando eu era um menino desses com bochechas grandes e vermelhas, calças curtas e com os lábios grudados de doce, costumava fazer caminhadas com meu avô por aqui. Lembro que Av. Angélica foi um dos lugares que passávamos. Hoje estou indo sozinho visitar meu avô.
Depois que as pessoas morrem fica uma saudade frustrada, um desejo apagado e renitente de acompanhar a alma da pessoa. Meu avô era um ótimo homem.
Vou por trás. Vou pegar as ruas Pará e Mato Grosso. Não estou mais com tanta pressa. Lembro que nos natais o vovô sempre fazia uma surpresa especial para mim. O que eu mais gostava era sua habilidade e técnica como manipulador de marionetes. Ele construía os próprios bonecos de madeira e os encordoava na altura da boca e das mãos, algo de corda nos pés. É a lembrança mais feliz de Natal que tenho.
Não fui no enterro do meu avô. Como também não fui no velório da minha outra tia. E de nenhum outro familiar ou parente. Não gosto do clima mórbido de funeral, acho absurdo comerem bolo e salgadinhos ao lado de em ente desprovido de alma. No fundo eu acho mesmo que tenho algum bloqueio com funerais. Algum pressentimento ruim em relação à morte.
Compro umas flores violetas e brancas, além de uma única Dama da Noite, a flor favorita do vovô. Não tem quase uma folha balançando ao vento na cidade hoje. Ou ainda é muito cedo. Como é véspera de Natal a maioria das pessoas deixa para o último instante, quando os produtos estão no limite exorbitante da extorsão e o tempo que se perde em filas intermináveis não compensa.
Vovô era militar. Nasceu na Itália e saiu de lá em 1923, vindo para o Brasil e casando com uma camponesa chamada Margarida, minha avó materna. Durante a década de 40, serviu junto com a força aérea brasileira, e voltou para o seu país natal para exterminar fascistas. Acho que por isso eu sempre também admirei meu avô. Apesar de militar ele era anarquista. Defensor de liberdades e tudo o mais. Dizem que as pessoas boas morrem cedo. Meu avô morreu aos 96 anos, enquanto dormia de uma parada cardiorrespiratória. Os médicos disseram que uma veia entupiu causando o ataque.
Margarida ficou com uma boa pensão do finado militar. Hoje ela não sabe de mais nada. Vive numa cadeira observando a irredutibilidade do nada. Que volta do nada a copiar mais nada. Qual o nome daquela doença que faz você esquecer até de você mesmo? Não lembro agora.
É a primeira vez que venho visitar o Senhor. Desculpe por não ter ido ao seu enterro. Não poderia suportar sua imagem estirada no leito frio e sombrio. Preferi guardar na memória aquela fotografia do velho amigo sorridente, contador de piadas e fazedor de troças.
Eu sei que o senhor está bem e que vai entender minhas dificuldades. Queria ficar mais. Tenho compromisso com a tia Margarida, que mandou muitos beijos e abraços para você. Ela com certeza sente muito sua falta. Não, ela não voltou a falar depois que o senhor se foi.
Não vovô, ainda não fiz netos. Estou tentando me estabilizar na profissão, crescer na carreira. O que eu faço? Acho que o senhor me conhece melhor do que ninguém. ...
Fiquei no Cemitério dos Protestantes até às 13h01. Peguei o metrô  e fui almoçar na Liberdade. De lá fui até o supermercado, peguei uma mochila lá dentro, arranquei as etiquetas e os alarmes que apitam na saída, e enchi a mochila com: Vinho, queijo parmesão, azeite virgem, um Chester e um peru, além de uma montão de chocolates suiços. A Mochila ficou bem pesada.
Cheguei no caixa com a mochila nas costas, sem nenhum produto e pedi um maço de cigarros. O segurança olhou pra mim e eu o cumprimentei com um piscar de olhos rápidos e um leve abaixar de cabeça. Ele respondeu simpático, peguei o maço de cigarro, disse não querer meu CPF na nota e parti para casa da vovô.
Quando se está bem vestido e se é branco, ninguém desconfia de você. Economizei uns duzentos reais furtando esses produtos no mercado. E eu faço isso com muita frequência, em várias lojas diferentes. Não acho errado roubar de quem rouba dos outros. E é sempre bom fazer uma economia.
Próxima Estação: Sumaré - Desembarque pelo lado direito do trem - O metrô vai funcionar limitado durante o período de Natal...As vezes eu gosto de sair sem carro. Economiza com combustível e não me deixa com as pernas formigando para ir embora de algum lugar.
Vovó Margarida não fazia mais nada. Quatro enfermeiras revezavam turnos para tomar conta dela. Dar banho, trocar, dar sopa na boca. Tia Margarida, como era costume chamar nos tempos de criança, parece ter uma tristeza ensurdecedora diante de seus olhos.
Ajudo com os afazeres da casa, lavo uns pratos, passo um pano no chão e preparo a ceia de natal. Fico das 17h02 minutos até às 22h42 minutos para terminar a ceia. Minha namorada ligou várias vezes, mas não atendi sob o risco de deixar alguma coisa queimar.
A enfermeira que tratava da minha avó no período noturno parecia uma modelo dessas revistas masculinas. Usava um sapatinho baixo de pano de camurça azul. Uma calça jeans branca colada, que dava um realce especial para suas coxas fortes, bem trabalhadas e aparentemente duras. Nunca se sabe como é o corpo de uma mulher por baixo de um jeans. Nunca se sabe o que existem por dentro de uma mulher.
De resto uma camisetinha top bege, com um bordado no lado esquerdo do peito Home Care e o  nome da empresa que ela trabalha. Meu nome é Carlota. Ela falou, falou, falou, enquanto eu cozinhava. Sem que eu pedisse ela quis me ajudar a fazer as comidas. Disse que era quase formada em Enfermagem pela USP e que esse trabalho fazia parte de um programa de estágio.
Também falou que não quer passar o resto da vida limpando merda de paciente em hospital. Seu objetivo é ser chefe de enfermagem em algum grande hospital particular. Sabe Inglês, Chinês, Espanhol  e já fez várias viagens de intercâmbio para o exterior.
Ela queria me dar o currículo. E talvez algo mais. Quando fui ao quarto da vovó dei uma fuçada nos criados mudos e penteadeiras cheias de espelhos e móveis históricos até encontrar o boleto de pagamento do serviço de enfermagem. Esse estágio está pagando até que razoavelmente bem.
O senhor é casado? Perguntou enquanto estava ao meu lado na pia, e pude sentir um perfume forte de flores silvestres atacar minhas narinas e meu bom senso. Não respondi e ela abaixou a cabeça, envergonhada. Desculpe. O senhor é muito bonito.
Meu terno Hugo Boss é elegante. Meus óculos Dolce and Gabbana. Relógio de platina. Se eu não for bonito assim, ninguém vai ser. Ela me contou toda a sua vida, como veio de uma família de classe média no Paraná, como seu pai vivia cobrando pra que ela se formasse logo, o ex-namorado gracinha que ela diz amar até hoje, o qual dormia sempre de conchinha com ela, e quando era de madrugada e ela viajava nas alturas do sono etéreo, o namoradinho tirava sua calcinha de lado e mandava ver.
Ela acordava de manhã grudada e não sabia porque. Vai ver nem ela acha que comer alguém dormindo é anormal. Disse não gostar do nome Carlota. Antiquado e fora de moda. Feio, ela achava o próprio nome feio.
O senhor tem telefone? Pedi para ela colocar tia Margarida na cama e comemos, eu e ela sentados à mesa, em silêncio. Seu turno vai até de manhã? Ela respondeu que sim. Falei que ia no posto de gasolina abastecer e caso minha noiva aparecesse para ela explicar a situação e pedir pra ela esperar. Ela concordou.
Antes de sair coloquei umas bolas vermelhas na árvore de natal. Pedi para ela terminar de decorar, caso se sentisse sozinha. Desço três ruas abaixo e uma moto está no aguardo. Subo na garupa, boto o capacete e vou encontrar um sócio, amigo número um do Cebola que está doente para saber quem matou o comparsa. Eu disse ter uma pista e que hoje a noite iria com ele desossar o maldito.
Enquanto eu disparava a arma na cabeça desse filha da puta, o celular tocou. Oi amor, desculpa não esperar você, é que meu sócio perdeu um documento importante e...Ela não deixou eu terminar de falar. Disse que me amava. Já estou indo te dar um cheiro e um abraço gostoso minha linda. Agora tenho que carregar esse saco humano para o porta-malas de um Citroen Xsara Picasso. Não disse isso. Do outro lado da linha ela imaginando o príncipe romântico. Desse lado eu botando o corpo do amigo do Cebola na van preta. Pode levar e seguir o procedimento. Pneus? Perguntou o menino de 12 anos. Respondi fazendo um gesto com a cabeça e falei para ele não esquecer de arrancar os dentes com alicate.
A essa altura a enfermeira deve estar dando em cima da minha namorada. Preciso voltar logo pra casa da titia Margarida. Quero encher minha amada de beijos. Não quero nenhuma estudante precipitada em lancinante volúpia para com minha gata. Já é Natal e eu vou fazer um teatro de marionetes pra elas. Depois vamos passear, beijar, tomar sorvete, ter uma leve DR, almoçar na casa do seu Zé de tarde. Preciso voltar logo para a Capital. Ficar em São Paulo é até legal. Mas tem muito prédio. Barulho. Vizinhos. Coisas e pessoas estranhas que eu nunca vou entender. Brasília. Síntese das artes e da corrupção. Seu solo é sagrado e teu céu límpido e amplo. Sonhar na Capital do País. Oi amor! Que saudade! Que abraço gostoso!

Crônica improvisada

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